quarta-feira, 30 de abril de 2014

UM OLHAR DE OPOSIÇÃO ÀS TENDÊNCIAS ANDROCÊNTRICAS NO CONTO AMOR DE CLARICE LISPECTOR



UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO- UEMA
CENTRO DE ESTUDOS SUPERIORES DE CAXIAS- CESC
DEPARTAMENTO DE LETRAS



FRANCISCA LUCILENE SANTOS DA SILVA



UM OLHAR DE OPOSIÇÃO ÀS TENDÊNCIAS ANDROCÊNTRICAS NO CONTO AMOR DE CLARICE LISPECTOR


T






CAXIAS-MA
2013
FRANCISCA LUCILENE SANTOS DA SILVA






UM OLHAR DE OPOSIÇÃO ÀS TENDÊNCIAS ANDROCÊNTRICAS NO CONTO AMOR DE CLARICE LISPECTOR

Monografia apresentada ao Curso de Especialização em Literatura e Ensino do Centro de Estudos Superiores de Caxias da Universidade Estadual do Maranhão (CESC-UEMA) como requisito para obtenção do título de Especialista em Literatura e Ensino
Orientador (a): Profª. Me. Sueleny Ribeiro Carvalho







CAXIAS-MA
2013


    S586u
 Silva, Francisca Lucilene Santos da
           Um olhar de oposição às tendências androcêntricas no conto Amor de Clarice Lispector / Francisca Lucilene Santos da Silva.__Caxias-MA: CESC/UEMA, 2013.
       53f.
Orientador: Profª. Ma. Sueleny Ribeiro Carvalho.

Monografia (Especialização em Literatura e Ensino) – Centro de Estudos Superiores de Caxias-MA, Curso de Especialização em Literatura e Ensino.

1.     Ensino. 2. Patriarcalismo. 3. Androcentrismo. 4. Desalienação. I. Título.

CDU 821.134.3(81)-34 



FRANCISCA LUCILENE SANTOS DA SILVA


UM OLHAR DE OPOSIÇÃO ÀS TENDÊNCIAS ANDROCÊNTRICAS NO CONTO AMOR DE CLARICE LISPECTOR
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Letras do CESC/UEMA, como  requisito para obtenção do título de Especialista em Literatura e Ensino
Orientador (a): Profª. Me. Sueleny Ribeiro Carvalho

Aprovada em _____ /_____/_____.

BANCA EXAMINADORA
.__________________________________________________.
Sueleny Ribeiro Carvalho (Mestre em Letras CESC/UEMA)

.__________________________________________________.
 Algemira de Macedo Mendes(Doutora em Letras CESC/UEMA)

._________________________________________________.
Silvana Maria Pantoja dos Santos (Doutora em Letras UESPI)



AGRADECIMENTOS
  • A Deus, fonte de misericórdia e sabedoria;
  • Aos meus pais Raimundo Nonato (In Memorian) e Inalda dos Santos, responsáveis pela pessoa que sou hoje;
  • A todos os professores do Departamento de Letras, em especial à professora orientadora Sueleny Ribeiro Carvalho, pelo apoio dado durante a realização deste trabalho;
  • A Fátima e a Francinete, amigas que me apoiaram durante todo curso;
  • A todas as pessoas que acreditaram e acreditam em mim e se mantiveram ao meu lado, incentivando-me, fortalecendo-me e ajudando-me durante essa trajetória.




































Aos homens a sociedade reservava o espaço público e tudo aquilo era e é dessa esfera; consequentemente, à mulher tudo o que concernia e concerne ao doméstico, a casa, ao lar. O ideal acadêmico destinava-se aos meninos, enquanto as prendas domésticas cabiam às meninas.
Nazilda Martins de Barros Moreira
RESUMO

O presente trabalho visa fazer uma análise do conto Amor do livro Laços de Família de Clarice Lispector, fundamentado na critica feminista, observando de que forma esta contribuiu para o processo de autodescoberta das mulheres, discutindo as causas de opressão fermina a partir do conceito patriarcal de literatura. Aqui também será analisado como se deu a ruptura do pensamento androcêntrico, identificado na voz feminina através da literatura, considerando tudo que possa vir servir de base e como alerta contra as questões patriarcais até então vigentes, como por exemplo, as características físicas e psicológicas da personagem principal do conto a ser analisado, no intuito de demostrar insatisfação por parte da personagem em questão com a condição da mulher naquela sociedade, verificando como ocorre essa tomada de consciência. Além disso, pretende-se averiguar se houve ou não por parte da personagem principal do conto, desalienação, levando-a a uma reflexão sobre sua condição de mulher. Esse trabalho está fundamentado em estudos de teóricos que versam sobre a questão de gênero na literatura, que dentre outros se pode citar:   Beauvoir(1980), Zolin(2005), Duarte(2002), Zinani(2006), Campadelli(1988) cujos pensamentos norteiam e procuram melhorar o processo de autoconsciência da mulher por meio da literatura.

Palavras-chaves: literatura. mulher. patraircalisamo. androcentrismo.  desalienação.










ABSTRACT

The present work aims to analyze the story Love, from the book Family Ties by Clarice Lispector, based on feminist criticism, observing how this contributed to the self-discovery process of women, discussing the reasons of female oppression from the patriarchal concept of literature. Here is also analyzed how was the rupture of androcentric thinking, identified in the female voice through literature, considering everything that might serve as a base and as a warning against patriarchal issues force until then, such as the physical and psychological characteristics of main character of the tale to be analyzed in order to demonstrate dissatisfaction with the character in question, regarding the status of women in that society, seeing how this awareness occurs. Furthermore, it’s intended to be investigated whether there was by the main character of the story, desalienation, leading her to reflect on her womanhood. This work is based on theoretical studies that deal with the issue of gender in literature; among others one can be mentioned: Beauvoir (1980), Zolin(2005), Duarte(2002), Zinani(2006), Campadelli(1988) whose thoughts guide and seeking to improve the process of self-consciousness of women through literature.

Keywords: literature. woman. patriarchalism. Androcentrism. disalienation.












SUMÀRIO

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS----------------------------------------------------------------------9
2 MULHER E LITERATURA: CONTESTAÇÃO A VALORES INSTITUÍDOS -------12                  
2.1 Histórico da Crítica Feminista: Contribuições para a literatura de autoria feminina-------------------------------------------------------------------------------------------------12
2.2 Escrita Feminina: A hora de quebrar paradigmas-----------------------------------18
3 O INÍCIO DA RUPTURA DO PENSAMENTO ANDROCÊNTRICO  NA LITERATURA BRASILEIRA DE AUTORIA FEMININA------------------------------------26
3.1 Clarice Lispector: Vanguarda e introspecção-----------------------------------------26
4 LAÇOS DE FAMÍLIA: UMA OBRA DE CARÁTER QUESTIONADOR ACERCA DA IMANÊNCIA DA MULHER DENTRO DA FAMÍLIA BURGUESA  -----------------32
4.1 Laços de família: convenções e aprisionamento------------------------------------32
4.2 Ana: satisfação em ser apenas rainha do lar?----------------------------------------35
4.3 A desalienação latente de Ana -------------------------------------------------------------43
CONSIDERAÇÕES FINAIS------------------------------------------------------------------------49
REFERÊNCIAS----------------------------------------------------------------------------------------51

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Cada vez mais as questões de gênero vêm se tornando objeto de estudo em diversas áreas do conhecimento assim como na Literatura e na Crítica Literária, com mais frequência as relações de gêneros vem se figurando entre os temas abordados em encontros, congressos, bem como se constituindo em motivo de tema em teses e trabalhos de pesquisa. Essa vertente da crítica literária tem assumido papel questionador da prática acadêmica patriarcal, afirmando que a experiência da mulher como leitora e escritora é diferente da masculina, implicando em significativas mudanças no campo intelectual, marcadas pela quebra de paradigmas e pela descoberta de novos horizontes de expectativas, como a mudança de mentalidade das mulheres em ralação a essa questão e o aparecimento de estudos sobre a literatura feita por mulheres. Estudos acerca de textos literários canônicos mostram inquestionáveis correspondências entre sexo e poder, considerando as circunstâncias sócias históricas como fatores determinantes na produção da literatura, sendo assim até pouco tempo só os homens podiam mostrar seus pensamentos acerca do mundo através da literatura.
A importância da ginocrítica para os estudos de gênero é bem relevante, pois propõe uma abordagem diferente da crítica feminista, prevendo a não revisão da literatura masculina, mas concentração na escrita feminina de maneira exclusiva, redefinindo assim as diferenças entre a escrita de mulheres e homens, já que os estudos feministas não eram bem aceitos pela academia como literatura, os estereótipos femininos abordados pela literatura masculina eram os da mulher boazinha, meiga, delicada e submissa, aquela que foi educada para casar e se contentar em cuidar dos filhos e do marido, a crítica literária feminina, veio para romper com esse pensamento.
Partindo da primícia de que as mulheres podem mudar de posição social abarcando desde reformas culturais, legais e econômicas, chegando até às reformas relacionadas ao modo de ler e produzir o texto literário faz-se necessário uma reflexão sobre esta temática, por isso a importância de estudar as questões de gênero e como se deu o processo de ruptura do pensamento androcêntrico no campo da literatura, através de um olhar de oposição às tendências androcêntricas no conto Amor de Clarice Lispector.
Tendo em vista o exposto, a presente pesquisa visa analisar como se deu o início da ruptura do pensamento androcêntrico na literatura, com base na critica literária feminista, fazendo uma análise do conto Amor do livro Laços de Família (1960) de Clarice Lispector, discutindo as causas de opressão feminina a partir do conceito patriarcal, com a finalidade de averiguar se houve ou não desalienação por parte da personagem principal do conto em questão, levando-a ou não a uma reflexão no que tange seus anseios como mulher naquela sociedade.
Os contos de Laços de Família (1960) ironizam o modelo patriarcal vigente, onde a mulher jaz no espaço privado, por isso questionam e procura encontrar soluções para os impasses criados , como se pode vislumbrar no conto Amor, objeto central de estudo desse trabalho, protestando contra os valores falocêntricos, mas ainda não se desvincula totalmente ainda dos modelos patriarcais, havendo assim apenas o início da ruptura do pensamento androcêntrico, ou seja, o começo de uma reflexão a caminho da mudança, pois apesar do enredo do texto ocorrer em um ambiente aparentemente calmo e tranquilo, a personagem Ana não se presenta contente com essa situação de aparente tranquilidade, de mesmice e monotonia, tudo se desestabiliza de súbito, esses lampejos a respeito do comtiano faz com que a personagem seja uma mulher diferente. Levando em consideração esses posicionamentos, faz-se necessário os seguintes posicionamentos: de que forma Ana demonstra insatisfação com os padrões vigentes dentro de uma sociedade dominada pelos homens? Como a protagonista do conto em questão se descobre como mulher oprimida em uma sociedade falocêntrica? De que maneira se pode notar se há ou não desalienação por parte da personagem Ana? Ana reflete de maneira questionadora acerca do papel exercido por ela, levando em conta sua condição de mulher?
O presente trabalho consta de objetivos explorativos sobre o rompimento das tendências androcêntricas na literatura brasileira que serão desenvolvidos seguindo os seguintes passos: pesquisa de cunho bibliográfico e multimidiático, buscando autores que escrevem sobre esta temática, visando uma fundamentação teórica consistente no que diz respeito à problemática investigada; identificação por meio de pressupostos teóricos de como se deu a ruptura das tendências androcêntricas na literatura na linha do tempo; considerações sobre a vida e obra da autora em questão e finalmente a análise do conto Amor verificando como a personagem principal rompe com um processo de alienação em que vive, começando e a partir daí a questionar seu papel como sujeito agente na sociedade em que vive.
O trabalho está dividido em quatro partes: Na primeira parte encontra-se as considerações iniciais onde é feito um apanhado geral sobre o trabalho; na segunda parte é tratada a relação mulher/literatura, bem como as contribuições da critica feminista para a literatura de autoria feminina, na terceira parte fala-se  da escrita de autoria feminina como suporte para a quebra de paradigmas na literatura além disso é feita algumas considerações sobre a escrita da autora Clarice Lispector, na quarta parte   uma abordagem sobre a ruptura do pensamento androcêntrico na literatura brasileira, constando a análise do conto Amor no que tange à desconstrução do pensamento androcêntrico na obra.
De acordo com o que foi abordado pretende-se mostrar como se deu a ruptura do pensamento androcêntrico na literatura brasileira, mais especificamente no conto Amor de Clarice Lispector, bem como a verificação, através da personagem principal Ana, das formas que a mulher, aqui representada pela  personagem, encontra para demonstrar insatisfação com a situação de subjugação a que é submetida, verificando se houve ou não desalienação por parte da personagem.












2 MULHER E LITERATURA: CONTESTAÇÃO A VALORES INSTITUÍDOS     

 2.1 A Crítica Feminista: Contribuições para a literatura de autoria feminina

Segundo (ZOLIN, 2005), a crítica feminista propriamente dita tem seu marco inicial com a publicação de Sexual Politcs, de Kate Millet (1970), a obra supera o aspecto puramente literário, com uma aguçada consciência política, discute questões sobre a posição secundária ocupada pelas heroínas dos romances de autoria masculina, bem como a das escritoras e críticas literárias, como se os leitores fossem puramente masculinos, não se perguntando se as mulheres gostam de ler o que eles escrevem, além disso, aponta para a desconstrução dos padrões sociais, edificados pela cultura a que as mulheres pertencem para servir ao propósito da dominação social e cultural masculina, discutindo as causas de opressão feminina a partir do conceito de patriarcado, a lei do pai, no diz respeito ao papel da mulher, tanto no âmbito doméstico e social, uma vez que ao longo dos séculos vem sendo culturalmente ensinado como próprio da natureza feminina, pois:

Essa política de força, segundo a teórica , afeta a literatura na medida                      em que os valores literários têm sido moldados pelo homem. Ela pondera que, nas narrativas de autoria masculina, as convenções dão forma às aventuras e moldam as conquistas românticas segundo direcionamento masculino. Além disso, são construídas como se seus leitores fossem sempre homens, ou de modo a controlar a leitora para que ela leia, inconsequentemente como um homem. (ZOLIN, 2005. P 190).

As discussões em torno de questões de gênero envolvendo identidade e subjetividade ganharam corpo, nos últimos anos, em todos os campos do conhecimento e com a literatura não foi diferente, essa mudança pode ser analisada no campo da literatura através da crítica literária, mais precisamente sob a ótica da crítica literária feminista, crítica esta que procura “definir o sujeito mulher, verificar as práticas culturais através das quais esse sujeito se apresenta e é apresentado, bem como reconhecer as marcas de gênero que especificam os modos de ser masculino e feminino, além de sua representação na literatura” (ZINANI, 2006.p 19 e 20).
Desde a sua origem, a crítica feminista vem procurando questionar a prática patriarcal na literatura, implicando em significativas mudanças no campo intelectual, rompendo paradigmas e descobrindo novos horizontes de expectativas nos estudos com textos literários, uma vez que:

Sempre foi muito difícil para a academia aceitar os estudos feministas como uma abordagem de análise literária [...]. Os romances de José de Alencar - Lucíola, Senhora e Diva - formavam uma tríade de perfis femininos amplamente estudados por pesquisadoras de todo o Brasil. Portanto, uma das formas de estudar a mulher na literatura foi (e ainda é) através dos escritos dos homens, única voz considerada autorizada a fazer arte, até porque se acreditava que o gênio artístico guardava uma porção divina da qual as mulheres não faziam parte, pelo menos na condição de criadoras. No máximo, chegavam a ser musas a inspirar. A historiografia literária no Ocidente sempre foi uma atividade reconhecidamente masculina, mas isso não impediu que as mulheres escrevessem. (LEIRO, 2010. sp).


Nesse mundo literário dominado pelos homens, Clarice Lispector escreve os contos do livro Laços de Família, contos estes que mesmo de maneira sutil, fazem o leitor refletir sobre o papel ocupado na sociedade pela mulher, pois estes textos versam sobre essa situação de imanência vivida por elas, mesmo não achando soluções para os impasses que são encontrados. O conto o “Amor” que será analisado está inserido fase feminista (feminist) que ainda não é totalmente desligada do patriarcalismo, foi escrito em 1974, período em a que mulher era caracterizada pela ausência de direitos. O texto conta a história de Ana relatando seu cotidiano na realidade e na imaginação. É um texto com o típico conflito à moda de Clarice, pois:

A protagonista, esposa/ mãe/dona de casa, depois de uma juventude intensa, enquadra-se no “destino de mulher” e refaz diariamente a rotina doméstica, até que vê na rua um cego mascando chiclete; percebe-se, então, num lampejo de lucidez, presa ao automatismo e imersa na escuridão. A explosão, provocada pelo encontro com o cego, revela-lhe um mundo até então apaziguado (XAVIER, 2002, p.160).


Percebe-se perfeitamente aqui a tríade que oprime a protagonista Ana, pois para ela, apenas ser esposa, mãe e dona de casa não lhe bastava, ela precisava de algo a mais para se realizar como pessoa, o encontro com o cego a faz refletir sobre algo que precisa mudar e a partir da dali sua vida nunca será mais a mesma.
Showalter (1994) apud Zinani divide a crítica feminista em duas correntes: a crítica ideológica também chamada de crítica feminina, centrada na mulher como leitora e a ginocrítica que se preocupa com a mulher como escritora, esta primeira procura representar os estereótipos da mulher na literatura, fazendo apenas uma revisão da teoria masculina, se espelhando nos modelos já existentes, não havendo nenhum rompimento com as questões androcêntricas, no entanto, a segunda, de acordo com (ZOLIN, 2005) se ocupa de várias questões como noções de gênero, classes, raça em relação à essencialidade da mulher; recuperação da identidade feminina; noções de representação literária, de autoria e de leitor/leitora, noção de cânone literário e crítico e discute a problematização, no que tange às possibilidades de intervenções nas relações sociais. A ginocrítica se preocupa com a mulher enquanto escritora investigando os aspectos relacionados à sua produção literária, identificando as especificidades da escrita feminina, como ela se faz sujeito na sua história, seu estilo, suas temáticas, seus gêneros e estruturas de escrita, pois a mulher é psicodinâmica e criativa, ressaltando sua trajetória profissional individual ou coletiva salientando a evolução e leis da tradição literária feminina. Esta última teoria foi definida como:

[...] o estudo da mulher como escritora, e seus tópicos são a história, os estilos, os temas, os gêneros e estruturas dos escritos femininos; a psicodinâmica da criatividade feminina; a trajetória da carreira feminina individual ou coletiva; e a evolução e as leis da tradição literária de mulheres (SHOWALTER Apud SOUSA, 2002. p. 128).

A teoria da ginocrítica, por se tratar de uma abordagem diferente da crítica feminista, ou seja, se concentra numa escrita puramente feminina, trouxe à tona a discussão pelos adeptos da escrita masculina de que a imaginação literária não está relacionada ao sexo e que uma redefinição da história literária em termos feminista estaria criando uma forma de discriminação sexual, pois imaginação criadora é uma só, no ponto de vista da tradição androcêntica. A crítica literária feminina é política na medida em que interfere na condição social, desconstruindo formas de preconceito e ideologias de gêneros, construídas durante a história, de maneira cultural além de promover o censo crítico e mudanças de mentalidade sobre as convenções que historicamente aprisionaram a mulher, sendo que:

 Durante muitos anos, a mulher, apesar de sua presença física inegável na sociedade, teve sua voz calada em um universo que lhe dispensara papéis de submissão, condenando-lhe a um silêncio que a rotulava de ‘incapaz’ de manifestar ou produzir um discurso que pudesse se igualar ao discurso do homem, tendo, inclusive, limitado seu espaço de circulação, uma vez que seu papel consistia em desempenhar atividades diretamente ligadas aos assuntos do lar. Dessa forma, merecendo apenas o espaço privado da casa. Casar era o destino das mulheres, sua vida fora sempre, alheia a priori vivia sob a tutela do pai, para depois viver à sombra do marido. (SOUSA, 2012, p.124).


Para (ZOLIN, 2005), as circunstâncias socioeconômicas são fatores determinantes na produção literária, por isso muitos críticos (as) feministas franceses e americanos, principalmente, desde década de 1970, debateram sobre o espaço delegado à mulher na sociedade e suas consequências e reflexos na literatura, tentando quebrar com o pensamento tradicional de que a mulher tinha que estar em segundo plano, em relação ao lugar ocupado pelo homem, marcada à submissão. Esses discursos não só interferiram no cotidiano feminino, mas também, acabaram por fundamentar os cânones críticos e teóricos tradicionais e masculinos que regem o saber sobre literatura.
Simone de Beauvoir (1980) questiona as relações entre os sexos, qual seja a mulher sempre como escrava e o homem como senhor. Ela discute a situação da mulher através de uma perspectiva existencialista, pela sua ótica, não basta apontar as relações de propriedade como responsáveis pela opressão feminina, é também necessário,  explicar o porquê dessas relações de propriedade terem sido instituídas contra a comunidade e entre os homens, pois:

O homem é sujeito, o absoluto; ela é o outro [...]. Ora, a mulher sempre foi, senão a escrava do homem, ao menos sua vassala; os dois sexos nunca partilharam mundo em igualdade de condições; e ainda hoje, embora sua condição esteja evoluindo, a mulher arca com um pesado handicap                (restrições) [...] Economicamente, homens e mulheres constituem como em duas castas; em igualdade de condições, os primeiros têm situações mais vantajosas, salários mais altos, maiores possibilidades de êxito que suas concorrentes recém- chegadas. Ocupam na indústria, na política etc., maior  número de lugares e postos mais importantes. Além dos poderes concretos que possuem, revestem-se de um prestígio cuja tradição a educação da criança mantém: o presente envolve o passado e no passado toda história foi feita pelos homens (BEAVOUIR, 1980. p.125).


De acordo com (ZOLIN, 2005) o feminismo de Beauvoir, por um lado, oferece um estudo da opressão das mulheres e por outro sugere formas de emancipa-las, pois não adianta conhecer o problema se não se faz nada para mudar essa realidade, salientando que não existe uma essência feminina responsável pela marginalização da mulher, existindo apenas o que ela chama de situação da mulher: “o fato de a mulher dar à luz é tomado como matriz das diferenças entre os sexos” (ZOLIN, 2005, p.188). Beauvoir questiona as razões que levam a mulher se submeter à opressão, através da noção da “má fé” de Sartre, onde diz que os seres humanos são livres, mas podem enganar-se fingindo não sê-lo, sendo que:

No caso da mulher, os meios são favoráveis para que esse processo se realize; sua fraqueza é estimulada. No entanto, a má fé dos outros em anular-lhe a liberdade- que é inerente às sua condição de ser humano- não é suficiente para plena realização dessa empreitada; a mulher mesma aceita a opressão que lhe é imputada, tornando-se cúmplice da própria escravidão (ZOLIN, 2005, p.188).


O feminismo existencialista de Beauvoir questiona o privilégio dos homens, apontando para o fato de que a transcendência do homem como ser humano não se choca com seu destino de homem, enquanto que a mulher vive uma crise, dividida entre essa transcendência e seu destino de mulher(maternidade, cuidar da família e submissão),  a chamada imanência, sendo assim,  por meio da situação de subordinada da mulher , é negado a ela  a expressão como ser humano, prejudicando seu processo de autoafirmação como ser humano , isso acontece por causa da crença enraizada na cultura e na História, de que a mulher tem que ser sempre submissa, uma vez que a passividade faz parte de sua natureza de mulher, esse fatores  torna a mulher um não sujeito, uma “coisa” dessa forma :


A mulher encerrada no lar não pode fundar ela própria sua existência; não tem os meios de se afirmar em sua singularidade e esta, por conseguinte, não lhe é reconhecida. Entre os árabes, os índios e muitas populações rurais, a mulher é apenas uma criada, apreciada segundo trabalho que fornece e substituída sem lamentações caso desapareça. Na civilização moderna, ela é, aos olhos do marido, mais ou menos individualizada; mas, a menos que renuncie inteiramente seu eu, obstinando-se (BEAUVOIR, 1980. p294).


     Conforme (ZOLIN, 2005), a escritora e ensaísta inglesa, Virgínia Woolf (1882-1941), foi uma das precursoras da crítica feminista e impulsionou um novo olhar em relação ao tema mulher e literatura até então marcada por toda a sorte de preconceitos e discriminações. Ela afirma em um dos principais ensaios A Room of One’s Own, que para a mulher escrever ficção ou poesia de qualidade ela necessita de um “teto todo seu” em que possa trabalhar em paz e de uma renda mensal capaz de lhe garantir independência, pois a mulher que nascesse com o dom para escrever literatura, seria com certeza descriminada e teria que viver sozinha. Outro aspecto importante da abordagem da escritora está relacionado ao ressentimento das mulheres pelos homens, pois muitos poemas escritos por mulheres do século XVII são marcados por sentimentos negativos em relação aos homens, o que segundo ela, foi isso que impediu o progresso da literatura de autoria feminina, como arte. Esse pensamento reflete nos temas acerca dos prejuízos sofridos pela literatura, pelo fato de se pensar em cada um dos sexos separadamente, pois:

A partir do princípio da androginia, ela pondera que é natural que os sexos cooperem entre si [...] As grandes mentes não pensam especialmente ou separadamente no sexo; são andróginas [...] Ao escreverem apenas com o lado masculino do cérebro, parecem criar obstáculos na comunicação; a emoção que lhes permeia a ficção é incompreensível à mulher [...]. Daí defender a necessidade de ser masculinamente feminina e feminina masculinamente para que a arte se realize e comunique experiência com integridade (ZOLIN, 2005, p.187).


Como se pode observar foram muitas as contribuições da crítica feminista para a literatura de autoria feminina, neste contexto o alvo da crítica feminista é o espaço delegado à mulher na sociedade bem como na literatura, tentando romper com discursos sacramentados de que a mulher é inferior e incapaz, uma vez quebrados esses conceitos, essa ideia passou a refletir não somente na vida pessoal, mas também no cânone e critica sobre literatura.
Muitas foram as correntes feministas, porém duas delas são percebidas hoje quando se fala em crítica feminista, a francesa centrada nas questões de sexos e escrita e a anglo-americana, que ocupa das mais variadas questões. As mais debatidas se referem a: noções de gênero, classe e raça, noções de experiência, noções de representação literária de autoria leitor/leitora, noção de cânone literário e crítico e a problematização do projeto crítico feminista, no que diz respeito às possibilidades de intervenções nas relações sociais.        (QUEIROZ, 1995 apud ZOLIN, 2005). Trata-se o feminismo de um movimento político bastante amplo, percorrendo muitos caminhos até chegar a uma teoria feminista acadêmica, voltado para reformas relacionadas ao modo de ler e escrever o texto literário produzido por mulheres.

2.2 Escrita Feminina: A hora de quebrar paradigmas

Durante séculos a mulher foi moldada para obedecer, era tratada como se não pudesse pensar e decidir sua vida por si só, sob a ótica masculina a pessoa do sexo feminino era vista como um ser incapaz de ser sujeito agente na sociedade, sendo criada para obedecer ao pai e posteriormente ao marido, a sociedade valorizava tudo que estava relacionado ao masculino, dessa forma a mulher não podia fugir às regras que lhes eram impostas sob a pena de desagradar uma sociedade patriarcal e consequentemente ser vista com maus olhos prejudicando a honra da família, era como se a mulher vivesse numa espécie de casta onde esta não poderia ascender de classe social à custa de sua competência para o trabalho fora do âmbito doméstico, ou seja, na classe social que ela nascia nesta mesma classe social ela permanecia até morrer  :

Ela (a mulher) sempre se encontra sob a tutela dos homens [...] ela fica sujeita à autoridade do pai ou do irmão mais velho [...] ou se submete à autoridade do marido. Em todo caso: “A mulher não é nunca senão o símbolo de sua linhagem... a filiação matrilinear é senão do pai ou do irmão da mulher, que se estende até a aldeia do irmão”. Ela é apenas a mediadora do direito, não a detentora (BEAUVOIR, 1980. p.92).

A escrita de autoria feminina é uma forma de resistir à tradição literária feita pelos homens, pois as mulheres sempre foram excluídas do cânone literário, por isso até hoje por meio da escrita, as mulheres buscam retificar o caminho percorrido pela literatura masculina, no sentido de desconstruir o preconceito formado durante a história em torno da literatura feita por mulheres, já que “a imagem da mulher refletida no texto torna possível à leitura especular; dessa maneira, a [escrita] feminina torna-se uma espécie de autobiografia que se confunde com a escrita da mulher”. (ZINANI, 2006. p32).

Essa expectativa vai possibilitar o exercício da hermenêutica do texto que pode originar uma nova maneira de ler, desconstruindo os procedimentos da crítica masculina e instaurando referentes que induzam os leitores (homens e/ou mulheres) a questionar a própria modalidade de leitura e de ideologia inscrita no texto. As experiências prévias e as expectativas influenciam, tanto o processo de produção como o de recepção de textos, visto que esses processos são estruturados por ideologias. [...] ideologias, valores culturais e sistemas de crenças estão ligados ao poder, e uma forma de poder é tanto a competência em definir a realidade social como a de impor a visão de mundo. Esses aspectos estão inscritos na linguagem, pois as formas de nomear e representar ilustra como a ideologia funciona, tanto na formação da identidade como nos relacionamentos de gênero.                (ZINANI, 2006. p33).

 A linguagem é um suporte que pode oferecer estratégias por parte do emissor no sentido de demonstrar poder, crenças, ideologias, medos, anseios e insatisfação, instigando o receptor a repensar suas práticas sobre determinado assunto e é exatamente o que acontece com a escrita feminina, pois através desta, as mulheres denunciaram e denunciam até hoje seu desejo de serem respeitadas como seres capazes de pensar e realizar tanto quanto os homens, sendo assim:

Grande parte da teoria e da literatura feminista supõe, todavia, a existência de um fazedor por trás da obra [...] Sem um agente não pode haver ação e, portanto, potencial para iniciar qualquer transformação das relações de dominação no seio da sociedade. (BUTLER, 2008, p.49).


A escrita feminina é um universo complexo, pois essa questão de gênero desde muito tempo tem sido motivo de discussão, para (BEAUVOIR, 1980) o sexo é totalmente diferente de gênero, para ela toda pessoa nasce sexuada e isso não pode ser mudado, mas o gênero sim, pois este é adquirido culturalmente, sendo assim é impossível pensar na literatura de autoria feminina desvinculada das questões sociais que abarcam a história das mulheres, sendo esta um produto de uma mulher inserida num contexto político e social.

É inevitável pensar a questão de gênero sem considerar que a história das mulheres, até pouco tempo, atrás, foi escrita por homens, que detinham o destino delas nas mãos. A nova história, a partir de instrumental metodológico e de práticas historiográficas renovadas, ocupando-se, também, com questões genéricas procura demonstrar que as mulheres constituem uma categoria fixa, exercendo papéis sociais diferentes (ZINANI, 2006. p. 92).

Como se pode notar as mulheres vieram conquistando seu espaço no que tange à literatura, como escritoras. Desde então tudo vem mudando, as mulheres conquistaram muitas coisas em várias áreas do conhecimento, se firmando como categoria fixa, e cada vez mais conquistando direitos, pois o que diferenciam os seres humanos não é o sexo, mas sua capacidade intelectual. O que de acordo com (ZINANI, 2006. p.24) “a análise da situação cultural da mulher é relevante no sentido de verificar como ela vê o outro, como é vista pelo grupo dominante, consequentemente, por si mesma”, pois:

Desde fins do século XIX e principalmente no século XX, a principal transformação por que passou a literatura de autoria feminina é a conscientização da escritora quanto a sua liberdade e autonomia e a possibilidade de trabalhar e criar sua independência financeira - através, basicamente, do trabalho jornalístico, diplomático (na América Hispânica, principalmente na Argentina e México) e o professorado. Ocorreu assim uma paulatina mudança da condição "feminina" para a condição "feminista". Desde a década de 1970, a consciência do corpo e o questionamento da existência, com a maciça entrada das escritoras na Universidade, pelo menos desde a década de 1950, tornaram suas vozes mais intensas. As escritoras passaram a expressar suas realidades psicológicas, interiorizadas, filosóficas, introvertidas e superaram o estágio em que repetiam o estilo dos homens, no século XIX. (LOBO, 1996, sp).


O percurso da trajetória de autoria feminina no romance inglês é descrito por (SHOWALTER, 1985 apud ZOLIN 2005), dando conhecer suas marcas, suas peculiaridades, em cada época especifica, com o objetivo de investigar as maneiras pelas quais a autoconsciência da mulher traduziu-se na literatura por ela produzida num tempo e espaço determinados e como ela se desenvolveu.
Ela apresenta três etapas apontadas no percurso literário que compreende as obras de autoria feminina entre 1840 até por volta de 1960, a primeira chamada de feminine (feminina), que é caracterizada pela a imitação dos padrões vigentes e internalização de valores falocêntricos, isto é presa ao patriarcalismo; A segunda é uma fase de ruptura denominada como feminist (feminista), em que há um protesto contra os valores e padrões vigentes em defesa dos direitos da minoria, mas ainda não é totalmente desligada do patriarcalismo, podendo ser considerada como uma fase de transição; a terceira e última fase é a female (fêmea ou mulher), esta fase é a de autodescoberta das mulheres, da busca da identidade própria, ela é totalmente livre dos modelos patriarcais.
 A partir dessa divisão feita por Showalter começam aparecer romances de autoria fermina, em que se pode perceber uma nova representação da imagem da mulher, livre das amarras das tendências androcêntricas, no entanto é importante observar que essas fases não são totalmente rígidas, pois apresentam uma certa flexibilidade, podendo haver lampejos de todas elas  numa mesma obra, ou seja, não há uma obra totalmente pura no  que diz respeito a essas fases,  o que vai classificar uma determinada obra dentro de uma dessas categorias é a predominância de uma delas.
Para (ZOLIN, 2005), as circunstâncias socioeconômicas são fatores determinantes na produção literária feminina, por isso muitos críticos e críticas feministas franceses americanos, principalmente, desde a década de 1970, debateram sobre o espaço delegado à mulher na sociedade e suas consequências e reflexos na literatura, tentando quebrar o pensamento tradicional de que a mulher tinha que estar em segundo plano, em relação ao lugar ocupado pelo homem, marcada à submissão.
 Esses discursos não só interferiram no cotidiano feminino, mas também acabaram por fundamentarem os cânones críticos e teóricos tradicionais e masculinos que regem o saber sobre literatura. Seguem então alguns termos que serviram e servem de paradigma para a desconstrução da oposição homem/mulher no âmbito da literatura:
·                    Feminismo: termo empregado em dois sentidos distintos, a maior parte das às vezes como oposição ao masculino e faz referência às convenções sociais, mas também pode simplesmente referir-se ao sexo feminino, no sentido puramente biológico, sem nenhuma outra conotação;
·                    Feminista :termo entendido como o movimento que preconiza a ampliação dos direitos civis e políticos da mulher, não somente em termos legais, mas também em termos de práticas sociais;
·                    Gênero: trata-se das diferenças sexuais e culturais, levando em conta os atributos culturais referentes a cada um dos sexos e a dimensão biológica dos eres humanos;
·                    Logocentrismo: designa o pensamento canônico, se empenhando em demonstrar e desqualificar a mistificação implícita no discurso ocidental ou europeu;
·                    Falocentrismo: termo utilizado por algumas escritoras e críticas francesas a para questionar a lógica predominante no pensamento ocidental, em como a predominância da ordem masculina;
·                    Patriarcalismo: termo que designa uma forma de organização familiar centrado na figura do chefe, advinda dos povos antigos, esse chefe era chamado patriarca, cuja autoridade era preponderante e incontestável;
·                     Desconstrução: palavra utilizada pelos teóricos da literatura em uma espécie de crítica das oposições hierárquicas que estruturam o pensamento ocidental, tais como: modelo x imitação, dominado x dominador, forte x fraco, presença x ausência, corpo x mente, homem x mulher, apoia-se na convicção de que oposições assim não são de natureza biológica, mas de construções ideológicas e que, portanto podem ser desconstruídas;
·                    Alteridade: constitui-se na qualidade que é do outro, qualidade daquilo que é diferente, considerando que todo o homem social interage e é interdependemente do outro, sendo asim a análise das obras literárias ecscrita por mulheres visa tornar conhecida a alteridade do discurso feminino, de acordo com princípio da diferença , um discurso outro em relação ao mesmo’ ;
·                    Mulher-sujeito e mulher-objeto: o primeiro termo se refere á mulher marcada pela insubordinação aos referidos paradigmas patriarcais, por seu poder de decisão, dominação e imposição enquanto o segundo termo é utilizado para designar a mulher submissa, resignada e sem voz ativa, uma vez que no caso da a mulher sujeito lhe é “ latente o desejo e a necessidade de independência, de liberdade, o que leva a ruptura do espaço, a partir da construção de um universo que permita o seu crescimento, a sua satisfação e não sua submissão ( SOUSA,2012,p.88) e no caso da mulher –objeto está , segundo Carvalho(2012) inserida num contexto patriarcal, caracterizado por ambientes projetados pela arquitetura masculina excluídas do processo de criação cultural estando sujeita à autoridade e autoria masculina.
 Ainda de acordo com (ZOLIN, 2005), a partir de meados anos de 80 no Brasil, começou a se desenvolver estudos sobre literatura e mulher. As linhas de pesquisa desenvolvidas nessa ocasião derivam da linha de pesquisa anglo-americana -Eliane Showalter- e francesa- Hélène Cixous e Julia Kristeva- intitulada Mulher e Literatura - perspectivas teórico-crítica; Representações do feminino no texto literário e Literatura feminismo, ambos com enfoque ,sócio-hstórico, literatura e o feminino ,enfoque psicanalítico, e Literatura e mulher ,enfoque estético-formal. Com o passar do tempo essas linhas de estudo foram se modificando e assumindo novas configurações: Teoria e crítica feminista: vertentes; A questão do Cânone e Gender - estudo de gênero, se configurando como estão no momento atual: (Resgate, Teoria e críticas, Interdisciplinaridade e Representação) e identidade- acréscimo meu. No Brasil bem como no exterior, a literatura de autoria feminina, até pouco tempo atrás não aparecia no cânone tradicional até que:

Raquel de Queiroz e Cecília Meireles, ao serem reconhecidas nacionalmente, abrem as portas das editoras a outras escritoras, mas é Clarice Lispector quem abre uma tradição para a literatura da mulher no Brasil, gerando um sistema de influência que se fará reconhecida na geração seguinte [...]. Trata-se de escritoras, que tendo em vista a mudança de mentalidade descortinada pelo feminismo em relação à condição social da mulher lançam-se no mundo da ficção, até então genuinamente masculino (VIANA, 1995, p.172 apud ZOLIN, 2005, p.277).

O romance Úrsula (1859) da escritora maranhense Maria Firmina dos Reis, é considerado por muitos estudiosos como o marco inicial da narrativa de autoria feminina, se enquadrando na fase chamada de feminina da literatura escrita por mulheres, apresenta uma linha romântica onde a donzela é disputada pelo protagonista herói e pelo antagonista da trama, no final a personagem principal morre, o que é típico do final das histórias românticas. A obra ratifica os valores androcêntricos, pois a mulher é representada como um ser frágil e indefeso, internalizando ainda os valores vigentes naquele contexto social, além da Maria Firmina dos Reis estão inseridas nesse mesmo contexto de produção literária de imitação fundamentada no patriarcalismo as escritoras Júlia Lopes de Almeida e Carolina Nabuco. É válido lembrar que a obra de Maria Firmina dos Reis é que é presa aos valores patriarcais e não a autora como pessoas, já que Maria Firmina dos Reis transgrediu, pois seu romance foi:

Um dos primeiros romances brasileiros de cunho abolicionista, o que denota seu caráter transgressor, pois contrariava as normas da sociedade patriarcal e eurocêntrica dominante no Brasil do século XIX, uma vez que a mulher era vista tanto pela sociedade quanto pela ciência desse período como um ser não pensante, pela fragilidade física e mental a sua ocupação deveria se voltar para os problemas do âmbito doméstico. A primeira transgressão é, por tanto, escrever e publicar ingressando no espaço público [...] A autora maranhense mesmo usando uma identidade genérica, não esconde a sua condição de mulher, tendo em vista que muitas escritoras, época, também, utilizavam nomes masculinos (CARVALHO, 2012.p.72).

No Brasil a fase de ruptura denominada de feminista é marcada pela obra Perto do Coração Selvagem (1943) de Clarice Lispector, esta obra questiona a relação de gênero, quebrando paradigma a partir da forma, pois se diferencia dos romances tradicionais, inovando no modelo de narrativas, se alternando em primeira e terceira pessoa, apresentando bastante complexidade e introspecção, a protagonista Joana é uma personagem inacabada está sempre em busca de si mesmo, ora tenta romper com a tradição ora volta a aceitar os valores androcêntricos que lhe são impostos:

Lídia teve um movimento de revolta: era tocada bem na ferida, friamente.
_Sim. Toda mulher... _ Assentiu.
_Isso vem contra mim. Pois eu não pensava em me casar. O mais engraçado é que ainda tenho a certeza de que não casei [...] O casamento é o fim, depois de me casar nada mais poderá me acontecer [...] E ser uma mulher casada, quer dizer, uma pessoa com o destino traçado. Daí em diante é só esperar pela morte (LISPECTOR, 1998, p.149).

A terceira fase chamada de fêmea, tida como marco inicial A República dos Sonhos (1984) de Nélida Piñon, instigando discussões sobre os valores patriarcais, a autora é considerada vanguardista por sua linguagem inovadora e hermética, uma linguagem nova sendo que “em todas as suas obras, imprimiu, seu estilo peculiar, sua sintaxe desafiadora e uma apurada visão do universo feminino” (ARAGÃO, 2012.p.20). A República dos Sonhos é uma narrativa que foge dos padrões romanescos, seu foco narrativo apresenta pontos de vistas diferenciados e alternados.
Diante disso pede-se afirmar que foram muitas as contribuições das vozes femininas no Brasil na construção de identidade feminina o que refletiu numa literatura autenticamente feminina, construída por meio de vozes que estiveram tanto tempo silenciadas: “A mulher ao escrever, transfere as inquietações da alma feminina, os dramas e os desejos; não através de ideais visionários, mas pela identificação com seu papel de escritora e leitora” (SOUSA, 2012, p.129), isso acontece por meio da alteridade, considerando a história e a sociedade em que essa mulher encontra-se inserida e essa escrita feminina vai mudando à medida que a mulher muda em busca de sua identidade própria.














3 O INÍCIO DA RUPTURA DO PENSAMENTO ANDROCÊNTRICO NA LIETRATURA BRASILEIRA

3.1 Clarice Lispector: vanguarda e introspecção

 Clarice Lispector (1920-1977) Nasceu na Ucrânia e veio para o Brasil, ainda recém-nascida, fixando-se com sua família no Recife. Aficionada a monteiro Lobato, ela escreveu, ainda menina, vários contos. Aos doze anos mudou-se para o Rio de Janeiro, onde foi estudar no Colégio Sílvio Leite. Nessa época entrou em contato com as obras de vários autores que admiraria a vida toda: Júlio Dinis, José de Alencar, Eça de Queiroz, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Mário de Andrade entre outros. Explorou como ninguém a prosa poética, sua obra está dividida em romance: Perto do Coração Selvagem (1944), O Lustre (1946), a Cidade Sitiada (1949), A Maçã no Escuro (1961), A Paixão Segundo G.H (1964), Uma Aprendizagem ou livros dos Prazeres (1969), Água Viva (1973), A Hora da Estrela (1977); contos: Alguns Contos (1952), Laços de Família (1960), A Legião Estrangeira (1964), Felicidade Clandestina (1971), A Imitação da Rosa (1973); A Via-crúcis do Corpo (1974), Onde estivestes de Noite?(1974); crônicas: Visão do Esplendor (1975), Para não Esquecer (1975), Um Sopro de Vida (1978), A Descoberta do Mundo (1984); livros infantis: O Mistério do Coelho Pensante (1979), A Mulher que Matou os Peixes (1969), A Vida Íntima de Laura (1974) e Quase Verdade (1978).
A romancista e cronista Clarice Lispector pertence à terceira fase ou terceiro tempo do Modernismo brasileiro, a geração de 45, como eram chamados os escritores e escritora dessa fase, renovou a narrativa, os prosadores produziriam nas décadas de 50 e 60 uma antologia de contos psicológicos, regionais, surrealistas, documentais, impressionista e fantástico e foi nesse âmbito da produção literária que Clarice Lispector surgiu para romper barreiras antes inabaladas, seu esforço constante de penetrar nas profundezas da consciência humana é a característica de sua literatura.
Sobre a questão de gênero Clarice Lispector ilustra a segunda etapa da trajetória da literatura escrita por mulheres a chamada fase feminina que questiona o modelo patriarcal prevalecente na literatura, a obra de Clarice rompe barreiras colocando em questão as relações de gênero. Segundo (XAVIER, 2002), Clarice pode ser considerada como um divisor de águas na história da narrativa brasileira escrita por mulheres, abrindo caminho pra uma nova forma de narrar, sendo vanguardista, inovando não só apenas nos temas como também nos aspectos estruturais do romance, abrindo caminho, no Brasil, para uma nova forma de narrar, dentro de um espaço até então masculinizado, quebrando a voz machista e autoritária do romance do seu tempo, a partir da obra Perto do Coração Selvagem.
Ainda conforme (XAVIER, 2002), Clarice Lispector desequilibra o paradigma romanesco tradicional, questionando a filosofia do cogito cartesiano que está relacionada com a quebra da tradição, dos limites ordenadores impostos à forma e de seu comprometimento com a pós- modernidade e com o feminismo não sectário, mas adepta às tendências vanguardistas, a autora cria personagens descentradas, que não se definem claramente, nem exterior nem interiormente. Sua obra confere um tratamento novo não apenas a determinados temas, mas aspectos estruturais do romance, sobretudo ao foco narrativo, abrindo caminho, no Brasil, para um novo modelo de narrativa, dentro de um aspecto racionalmente fechado à mulher, sendo vanguardista em muitos aspectos, desconstruindo a voz autoritária do romance tradicional, ao mesmo tempo em que abandona as convenções narrativas para adotar a complexidade do multiperspectivismo, por isso “Clarice sempre teve a fama de escrever difícil. Seus contos e romances deixam muita gente atrapalhada, se perguntando: mas é um conto mesmo? É um romance mesmo? Perturbadores, seus livros falaram, sobretudo de sentimentos”. (STRAUSZ, 2003, p.04).
O Romance psicológico segundo (COSTA, 2008) surgiu com os avanços da ciência que estuda a mente humana, de modo a revolucionar a composição dos personagens e tempo ficcional, esse fator fez com que os escritores criassem um novo tipo de romance, que toma como base o interior da alma do ser humano, dentro desse contexto surgiu Clarice Lispector, a escritora é, de acordo com                  (FERNANDES e NOVAIS, 2004), considerada uma autora intimista, por abordar em suas obras a vivência interior, o que e passa no íntimo do narrador ou dos personagens, nesse caso o que é mais importante são as impressões do ‘eu’ e não os fatos que as desencadeiam, fatos esse que são geralmente coisas banais, situações corriqueiras do dia a dia dos grandes centros urbanos, onde seus personagens principais são geralmente mulheres, em que o narrador expõe as inquietações do mundo interior dessas personagens, a originalidade da obra de Clarice não está precisamente nos temas, mas na linguagem que esses temas apresentam com metáforas e imagens inesperadas “eu via na sorridente fotografia mal-assombrada de um rosto cuja palavra é um silêncio inexpressivo, todos os retratos de pessoas são um retrato mona Lisa” (LISPECTOR, 1998, p.27), todas as pessoas são enigmáticas como o sorriso da famosa pintura de Da Vinci.
 Consoante (CADORE, 1999), Clarice Lispector juntamente com Guimarães Rosa revolucionou o modo de narrar na ficção brasileira.  Segundo (LOBO, 1996), Clarice assume o discurso tipicamente feminino para desconstruí-lo de dentro, enquanto prosa poética, ao recriar a expressão do eu feminino, que se insubordina ao mesmo tempo em que se autoquestiona, principalmente nos seus romances, A maçã no escuro (1961), A paixão segundo G.H. (1964), Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969) e A hora da estrela (1977). O tom original de Lispector está na sua franqueza de expressão, numa perspectiva existencialista e psicológica, na busca da identidade da mulher dentro do lar burguês, buscando significados não visíveis no cotidiano o que a leva à descoberta do significado eu feminino, vislumbrando assim, problemática da mulher que não se esgota na aparência do mundo. A sutileza e a ironia são próprias do discurso modernista, Lispector, inova na literatura brasileira com um vocabulário extraordinário ao mesmo tempo em que valoriza a personagem feminina e a escrita da mulher num nível universal único na literatura brasileira, Clarice tinha mesmo dom para a literatura, fazendo o leitor mergulhar nesse mundo introspectivo que ela descobriu:

Eu tive desde a infância várias vocações que me chamavam ardentemente. Uma das vocações era escrever. E não sei por quê, foi esta que eu segui. Talvez porque para as outras vocações eu precisaria de um longo aprendizado, enquanto que para escrever o aprendizado é a própria vida se vivendo em nós e ao redor de nós. É que não sei estudar. E, para escrever, o único estudo é mesmo escrever. (LISPECTOR, 2003).


 De acordo com (FERNANDES e NOVAIS, 2004), uma das características da escrita de Clarice é atingir as regiões mais profunda da mente das personagens par sondar os mecanismos mais complexos do mundo psicológico, sua escrita objetiva a não predominância de enredos lineares, do tempo psicológico, da importância secundária do espaço exterior bem como as características físicas das personagens, no entanto essas personagens se descobre em um mundo absurdo diante de um fato inusitado que provoca um desiquilíbrio interior capaz de mudar a vida da personagem para sempre,  sendo que:

Personagens e narradores desenvolvem, assim, um mesmo tipo de prática: aventuram-se através da imaginação, buscando romper com a barreira da palavra, com o rotineiro mundo lógico, voltado unilateralmente para os fatos observáveis. É necessário recuperar o “selvagem coração da vida”, perdido quando o homem perdeu historicamente sua liberdade instintiva- um mundo pré-lógico e pleno de vitalidade (CAMPEDELLI e JR, 1988, p.132).

O romance de Clarice prioriza a individualização, sendo precursor na desrealização do indivíduo do real como tentativa de se chegar ao culto sob as aparências.
Segundo (FONSECA, 2007), obra de Clarice Lispector abriga uma complexa cosmovisão de mundo e do homem, sua literatura é um mergulho profundo no mundo introspectivo dos mistérios do ser, suas narrativas parecem buscar sempre a origem ou dos princípios das coisas, se deparando com a complexa condição humana que está para além do racional:

Sua literatura é um ambíguo espelho da mente, registrado através do fluxo da consciência, que indefine as fronteiras entre a voz do narrador e das personagens. Rompe-se, assim a narrativa referencial, ligada a fatos e acontecimentos. Em lugar dela, emerge uma narrativa interiorizada, centrada num momento de vivência interior da personagem (ou do narrador). É possível, até mesmo, que um acontecimento exterior provoque o desencadear do fluxo da consciência: um acontecimento pode liberar ideias que vão até o inconsciente da personagem. (CAMPEDELLI e ABDALA 1988, p.132).


Dessa forma, a partir de um estado de desejo, as personagens dessa autora mergulham num processo de autodescoberta, percorrendo entre o estado de satisfação e a frustração, numa busca constante para se encontrarem em si mesmas, reafirmando a problemática da felicidade abordada por Clarice, que pode estar em um momento de entendimento do seu próprio eu.
Este processo de autodescoberta ocorre em Felicidade Clandestina (1971), cujo enredo gira em torno de um conflito, envolvendo o empréstimo do livro Reinações de Narizinho de Monteiro Lobato onde a personagem dona do livro sente prazer em maltratar outra personagem que o deseja emprestado para lê-lo, a felicidade da dona do livro é torturar a colega, pois a primeira é filha de dono de livraria e consequentemente poderia ler quantos livros ela quisesse o que ela não faz, mas se aproveita da situação para humilhar a colega de classe, fazendo esta ir muitas vezes a sua casa buscar o livro em questão, porém todas as vezes que a colega chegava lá a dona do livro dava as mais variadas desculpas, até que um dia a mãe da dona do livro percebeu tudo e emprestou o livro para a menina pelo tempo que ela quisesse.
Os textos de Clarice Lispector carregam a dicotomia da escrita de autoria feminina, conservadores, mas vez por outra transgredem, emancipação está nas entrelinhas do discurso e não de forma clara e objetiva de maneira escancarada, revelando uma sociedade em que a mulher olha para dentro de si própria, refletindo no que precisa ser modificado.
Sendo assim, poucas mulheres se aventuravam na literatura, mas conforme (XAVIER, 2002, p. 159 e 160) Clarice pode se considerada como um divisor de águas na história da narrativa brasileira escrita por mulheres, abrindo caminho pra uma nova forma de narrar, sedo vanguardista, inovando não só apenas nos temas como também nos aspectos estruturais do romance, abrindo caminho, no Brasil, para uma nova forma de narrar, dentro de um espaço até então masculinizado, quebrando a voz machista e autoritária do romance do seu tempo, a partir da obra Perto do Coração Selvagem (1944). Os contos de Laços de Família (1960) ironizam o modelo patriarcal vigente, onde a mulher jaz no espaço privado, por isso questionam e procuram encontrar soluções para os impasses criados, como se pode vislumbrar no conto Amor, onde a dona de casa Ana não se sente feliz e tenta fugir da sua realidade, usando a fuga da realidade como válvula de escape para fugir de si mesma e também para passar o tempo.
As narrativas de Clarice projetam através das personagens ou do narrador, inquietações e anseios, sempre em busca do mistério, da essência, por meio das indagações sobre a vida e sobre si mesmas, como a própria afirma “Preste atenção e é um favor: estou convidando você para mudar-se para reino novo” (LISPECTOR in XAVIER, 2002, p.157). Reino novo este que as personagens cansadas do cotidiano banal, mergulham em mundo subjetivo, refletindo sobre a existência humana, buscando sua identidade e esta busca  pela identidade sempre perpassa o outro, seja  por meio de uma situação, de  um animal, de  uma pessoa ou de um animal, caso da personagem Ana do conto Amor, esses questionamentos veio através de uma situação e uma pessoa no caso um  de cego que mastiga chicletes na parada de bondes.




























4 LAÇOS DE FAMÍLIA: UMA OBRA DE CARÁTER QUESTIONADOR ACERCA DA IMANÊNCIA DA MULHER DENTRO DA FAMÍLIA BURGUESA 
4.1 Laços de família: convenções e aprisionamento

A obra Laços de Família de Clarice Lispector é composta por treze contos: Devaneio e embriaguez de uma rapariga, Amor, Uma galinha, a imitação da rosa, Feliz aniversário, A menor mulher do mundo, O jantar, Preciosidade, Os laços de família, Começos de uma fortuna, Mistério em São Cristóvão, O crime do professor de matemática e O búfalo, que segundo (CAMPEDELLI e ABDALA, 1988) é uma coletânea publicada em 1960, reunindo sete contos inéditos e seis outros que foram anteriormente publicados sob o título Alguns Contos (1952), entre os quais Amor, conto objeto de estudo desta análise, a autora procura registrar, nesses contos, o processo de aprisionamento dos indivíduos por meio dos ‘laços de família’ de sua ‘prisão doméstica’, sob pena de que essas formas foram convencionadas e estereotipadas e foram ritualmente repetidas de geração em geração, como uma forma de preconceito, sem a consciência crítica de sua validade.
 Nos contos: Devaneio e embriagues de uma rapariga, Amor, A imitação da Rosa, Os laços de família, Feliz aniversário, Preciosidade e Mistério em São Cristóvão, o enredo gira em torno da condição feminina no contexto familiar enquanto que em Uma galinha, A menor mulher do mundo, Começos de uma fortuna, O Búfalo e O crime do professor de matemática, mesmo o enredo sendo preso ao universo familiar, há passagens fora do contexto doméstico propriamente dito, como por exemplo, em A menor mulher do Mundo, onde quase todo enredo ocorre em uma floresta, quando um explorador francês se depara com uma pequena mulher que ele passa a chamar de Flor. A maioria das personagens centrais dos contos de Clarice são mulheres (Devaneio, embriagues de uma rapariga, Amor, A imitação da Rosa, Os laços de família, Feliz aniversário, Preciosidade, A menor mulher do mundo, Começos de uma fortuna, O Búfalo) e que por algum motivo simplório e corriqueiro quebra sua rotina dentro do contexto repetitivo e monótono do lar ou fora dele, seja vendo um cego mascar chicletes (Amor), numa cusparada no chão (Feliz aniversário), nos passos de um desconhecido (Preciosidade), no solavanco de um táxi (Os laços de família), non grito de uma garota assustada (Mistério em São Cristóvão) ou no olhar de negro búfalo (O Búfalo), no entanto, tudo no final retorna à tranquilidade inicial do seio familiar das personagens, mas não igual a antes, pelo menos subjetivamente, ao passo que:

A família, motivo tão explorado em nossa literatura desde o Modernismo, recebe aqui um tratamento ironicamente desconstrutor. Presente em quase todos os contos da coletânea, este tema é um elemento estruturante da narrativa, uma vez que são esses “laços”, que protegem e sufocam os desencadeadores dos dramas vividos. (XAVIER, 2008, p. 51).

Os contos de Laços de Família, segundo (FILHO,2013), possuem personagens que mesmo mascaradas pela rotina do dia a dia, através de uma ‘epifania’, iluminam sua vida, essa epifania as levam a uma reflexão, fazendo com que estas se autodescubram ao ponto de chegar a desalienação, este processo epifânico pode ocorrer por meio de um evento ou um incidente comum do cotidiano, como no caso do conto Amor em que Ana começa a questionar a sua maneira de viver até então, ao ver um cego que mascava chicletes em uma parada de bonde. A rotina é o carro chefe do enredo desses contos, pois esta é o principal tema deles, por isso seus personagens são na grande maioria mulheres, uma vez que não há mais pessoa vítima da rotina do que as mulheres. Geralmente suas personagens são fracas, frustradas e desajustadas, que se escondem por trás de uma casca, casca esta que as envolve em náuseas e angústias, quase sempre estas personagens tem um momento de lucidez, que as desperta da rotina, mas sempre voltam para essa mesma rotina para se refugiarem de suas fragilidades, inseguranças frustações, são desapropriadas de autoafirmação, se movendo de acordo com as convenções e imposições sociais e familiares. No conto Amor, objeto de análise desse estudo a personagem Ana se encaixa perfeitamente nesse perfil, esmagada pela rotina, pertence a uma família urbano-burguesa, cujos valores sociais e familiares estão em nítida decadência, pois esse é o estereótipo das personagens dessa coletânea que ironizam os ‘laços de família’:

 Num conjunto de treze contos, Clarice Lispector nos apresenta o retrato de uma época: a nossa [...]. O livro enfoca e fotografa o desmoronamento de todo um complexo de instituições, fórmulas e convenções sociais [...]. O homem que é levado, que não quer tomar conhecimento de sua alienação, e, se por acaso isso acontece, recusa-se a tomar qualquer providência. O homem mascarado, insensível, forjando atitudes, ideias e sentimentos, a título tão somente de verniz. [...] A mulher se cansa, se enfara, se empanturra dessa vida de momentos iguais e insípidos. E que pode o indivíduo fazer ante o mundo? Ou ele se enquadra, se amolda e se torna a mãe desvelada, a esposa perfeita [...]. Após o enquadramento só vem a rotina que, se quebrada, traz angústia; se mantida, traz fastio[...] . Os laços de família tão tênues, tão frágeis e tão corroídos que atestam a desestruturação de uma sociedade doente. Os homens veem a ‘opacidade do mundo’, o vazio e a gratuidade da existência, a falta de justificativa da vida diária, a banalidade e estupidez de seus dias vividos na base de ilusões e convencionalismos, mas, na certeza da angústia como decorrência da conscientização, preferem ficar ‘cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos’. (FILHO, 2013, s.p).

As personagens retratadas aqui preferem o comodismo de uma vida enfadonha a se despertarem para um novo modo de viver, optando por levarem uma vida “sossegada” ao invés de correrem riscos rumo ao desconhecido, valorizam a rotina por medo de perder seus protetores e frágeis  laços de família.
De acordo Com (XAVIER, 2002) a obra de Clarice trás nas suas entrelinhas muitos questionamentos sobre a condição da mulher na sociedade patriarcal, rompendo com esse estado de “coisa”, pondo em questão as relações de gênero:

Os contos de Laços de Família (1960), - O próprio título é muito significativo-, tornam visível a repressão sofrida pelas mulheres nas cotidianas práticas sociais. O feminismo já havia desencadeado um processo de conscientização e a narrativa de autoria feminina vai incorporar as questões polêmicas contidas em O segundo sexo (1949) d Simone de Beauvoir. Chamar essa etapa de feminista não significa dizer que ela é panfletária; ninguém discute o valor estético da obra de Clarice e, no entanto, ela traz nas entrelinhas uma pungente crítica aos valores patriarcais. (XAVIER, 2002, p.159)

Ainda em concordância com (XAVIER, 2002) nos contos de Laços de Família se torna muito visível à opressão vivida pelas mulheres nas práticas cotidianas da sociedade daquela época, dessa forma Clarice Lispector pode ser considerada um divisor de águas no que tange à trajetória da narrativa brasileira de autoria feminina por colocar em discussão as questões de gênero, subvertendo ao paradigma romanesco tradicional criando personagens descentradas que não se definem claramente, nem exterior nem interiormente. Nos contos de Laços de Família, há um questionamento de gêneros, no entanto não há soluções para os impasses que são encontrados, mesmo assim Clarice Lispector promove uma revolução no romance brasileiro desconstruindo os desfechos canônicos das narrativas tradicionais, legitimando novas perspectiva a respeito das condições femininas, possibilitando o surgimento de novas escritoras que se ocuparam com as relações de gêneros. 

4.2 Ana: satisfação em ser apenas rainha do lar?

O conto Amor objeto desse estudo, pertence à segunda fase da tradição literária, essa fase protesta contra os valores falocêntricos, mas não se desvincula totalmente ainda dos modelos patriarcais, com o seguinte enredo: A personagem central do conto é Ana, dona de casa, com marido e filhos. Um dia num carro elétrico, quando voltava das compras, Ana vê um cego mastigar chicletes e fica confusa. Partem-se os ovos que ela traz consigo, o encontro é tão intenso que Ana se esquece de descer na sua parada, ela caminha meio confusa e acaba no Jardim Botânico, onde fica algum tempo em um estado de reflexão e revitalização. Assim que se lembra dos filhos, volta apressada para casa, ainda perturbada com que lhe acontecera, mas decidida a continuar com a mesmice de sua vida simples e monótona. Pelo enredo percebe-se que não há ainda a ruptura do pensamento androcêntirico, mas há pelo menos o começo de uma reflexão apontando para um caminho de mudança, uma vez que apesar de maior parte enredo do texto ocorrer fora do lar, a personagem não parece estar contente com essa situação, tudo se desestabiliza de súbito, em lampejos a respeito do cotidiano fazendo com que a personagem não seja jamais como ela era como será percebido ao longo desse estudo, em que será analisado se houve ou não desalienação por parte da personagem em questão, sendo que:

O ideal de felicidade sempre se materializou na casa, numa choupana ou no castelo: encarna a permanência e a separação. É entre seus muros que a família se constitui numa célula isolada e afirma sua identidade para além das passagens de gerações; um passado conservado sob forma de móveis e retratos de antepassados prefigura um passado sem riscos.               (BEAUVOIR, 1980, p.195)

 A presente análise está centrada em uma personagem (Ana), pois mesmo sendo fictícias, as personagens têm muito a ver com a nossa realidade, ao ler o conto, com certeza muitas leitoras se identificam com essa personagem seja porque de certa forma possuem vida parecida ou porque conhece alguém que se encontra ou se encontrou na mesma situação e também por que:

A seleção de personagem é um processo que pressupõe a seleção de caracteres, a fim de estabelecer um perfil das demais. Dessa forma, a personagem inserida no universo diegético requer um grau de verossimilhança [...] o leitor, por sua vez, toma conhecimento, ou se apropria dessas características, através das diversas vozes, que cruzam a narrativa, seja a do narrador, a da própria personagem. (MENDES, 2012, p.34).


De acordo com (BEAVOUIR, 1980), desde a origem da família com a sociedade patriarcal, a mulher tem sido colocada em segundo plano, talvez por ser considerada pelos homens como um sexo frágil e por ter recebido a tarefa imposta pela natureza de gerar os filhos, por conta disso criou-se certa descriminação contra a mulher, sendo esta considerada como um ser incapaz e dessa forma foram-lhe subtraindo seu direito de sujeito agente na sociedade, uma vez que:

Nenhum sujeito se coloca imediata e espontaneamente como inessencial; não é o Outro que definindo-se como o Outro define o Um; ele é posto como o Outro pelo Um definindo-se como Um. Mas para que o Outro não se transforme no Um é preciso se sujeite a esse ponto de vista alheio. [...] Mesmo quando os direitos lhe são abstratamente reconhecidos, um longo hábito impede que encontrem nos costumes sua expressão concreta. O lugar da mulher na sociedade é sempre eles [homens] que estabelecem. Em nenhuma época ela [mulher] impôs sua própria lei. [...]. Voltada à procriação e as tarefas secundárias, despojada de sua importância prática e de seu prestígio místico, a mulher não passa desde então de uma serva (BEAVOUIR, 1980, p.12-100).

O conto Amor trata dessa condição da mulher observada por Beauvoir, mas apresenta por meio da personagem principal certo desconforto em relação a essa situação vivida pelas mulheres. A narradora começa o conto já dizendo que Ana, a protagonista, está meio cansada e sobe no bonde com um saco feito de tricô contendo as compras que ela fizera para preparar o jantar, no intuito de valorizar os afazeres domésticos, Porem dá um ar de insatisfação à personagem, quando diz que Ana , por caminhos tortos caiu num destino de mulher, no caso, o casamento e consequentemente a vida doméstica, fazendo perceber que isso era só o que as mulheres poderiam almejar para sua vida naquela época, Ana demonstra isso “num suspiro de meia insatisfação”:

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume, no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto num suspiro de meia insatisfação. [...] Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se tivesse o inventado. (LISPECTOR, 2009, p.19-20).

Realmente a protagonista caíra em um destino de mulher, vivendo para cuidar do lar, dos filhos e do marido, agradando mais aos outros do que a si mesma, pois Ana está condicionada a um esquema tradicional da família de modelo patriarcal, uma vez que “a família constitui a sociedade primordial” (ZINANI, 2006, p.85), ela nunca soubera se reconhecer como um individuo-mulher naquela sociedade falocêntrica, sendo vítima de sua própria liberdade:

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta [...] A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando [...] Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranquilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida [...] No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. [...]. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera. (LISPECTOR, 2009, p.19-20).

Como se percebe há uma valorização do ambiente doméstico por meio dos pensamentos da personagem, mas no momento em que Ana se depara com o cego, no seu automatismo de mascar chicletes, ela desperta e começa a refletir sobre o sentido de sua vida, sobre a vida automática que ela leva e sobre sua cegueira diante disso, percebendo que ela também vive naquele automatismo, sempre fazendo as mesmas coisas, no caso, a servidão da vida doméstica, pois estava tão habituada à presença do mundo que a rodeava que deixou de prestar atenção nele, e foi através desta cena em Ana viu o cego mascar chicles, que ela começou a refletir sobre sua identidade como mulher, como sua vida era para os outros, foi nesse momento de epifania, ou seja, nesse incidente, que a personagem viu iluminar sua vida. Nesse instante Ana percebe o quanto sua vida era insignificante e que a submissão era seu papel na sociedade então ela começa a perceber que tudo era feito na sua vida de modo rotineiro e monótono, de modo que um dia se arrastava atrás do outro, sem nada  de interessante que pudesse quebrar sua angustiante rotina, esse acontecimento possibilitou, por meio de uma angústia profunda, uma ruptura com o cotidiano da personagem pautado no pensamento androcêntrico, mesmo que seja de caráter sentimental, introspectivo.

Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher. O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto. A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego. O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranquila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles. Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada. (LISPECTOR, 2009, p.21-22).

A personagem Ana, também demonstra insatisfação com esse mundo doméstico através de seu corpo, insatisfação com esse mundo marcado por repetições, pois seu corpo demonstra fadiga, enquanto ela prepara a comida na cozinha e também durante o jantar para os convidados. Além disso, quando Ana se encontrara no Jardim Botânico, pensou na sua família e isso lhe causou muito angústia e náuseas, pois depois do incidente do cego na parada de ônibus, Ana passou a refletir se sua vida estava do jeito que ele realmente queria, porém mesmo incomoda com a vida que levara até ali, mesmo assim  ela resolve cumprir sua responsabilidade de “ser social” que era somente cuidar dos filhos e do marido , mesmo estando nesta situação de irrealidade que toda situação anterior  lhe causara ela retoma sua situação de realidade a de dona de casa e “ rainha do lar”.

Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada [...] Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor [...] Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre [...] A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. [...]. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. (LISPECTOR, 2009, p.25-26).

Ao chegar ao lar, Ana observa os cômodos da casa, os móveis agora parecem diferentes, pois Ana agora está diferente, tudo dentro de casa lhe é estranho e desconhece aquele mundo, agora aquele ambiente é alheio a ela, é um mundo estranho e confuso, ela se incomoda com presença de pequenos bichos na cozinha, tais como besouros, mosquitos e formiguinhas, chegando a esmagar uma dessas criaturinhas com o pé, numa tentativa de acabar com tudo que constituísse uma ameaça para a paz e tranquilidade do seu ambiente “pequeno burguês” onde ela vive que é o seu lar doce lar, no intuito de permanecer dentro dos padrões estabelecidos por uma sociedade falocêntrica, no entanto isso será difícil de acontecer, pois mesmo Ana não querendo externar sua insatisfação, tentando voltar a sua tranquilidade cotidiana, é impossível, uma vez que agora ela vê descortinar diante de si outras realidades fora da rota doméstica, mas prefere ficar calada a se arriscar num mundo totalmente novo, desconhecido ainda que fosse de modo abstrato:

 Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?[...] Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar. Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia.[...] Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, calor do forno ardia nos seus olhos. (LISPECTOR, 2009, p.27).

Ana, durante sua reflexão por causa do incidente do cego sente medo, nojo e amor, esses sentimentos se misturam desencadeando nela uma angústia profunda, lhe provocando náuseas, essas náuseas sejam talvez uma maneira de externar toda sua insatisfação com sua vida, mas mesmo insatisfeita, ela é romântica como a maioria das mulheres “dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... [...] Oh! Mas ela amava o cego! Pensou com os olhos molhados. No entanto não era com esse sentimento que se iria a uma igreja” Lispector (2009, p.23-27), Ana sente um amor que mistura nojo e piedade e porque não um amor carnal? Isso faz com ela tenha certa reciprocidade com o cego, uma vez que a vida do cego mistura tudo isso e sente medo por se sentir insegura em relação ao que estar por vir sendo que:

O amor pode se entendido como um fenômeno que, respeitando a autonomia dos seres, tende reforçar a realidade individual, através do cuidado recíproco, em cada um procura o bem do ouro como seu próprio. Assim pode- se afirmar que a existência do amor está condicionada a sua reciprocidade, podendo ser considerado como união de intentos, de interesses, de propósitos [...]. O medo é uma emoção associada à perspectiva de um mal eminente que pode trazer grandes dores ou destruições. (ZINANI, 2006, p.107-110).

A personagem principal sente amor pelo cego por se identificar com a vida dele, com seu automatismo ao mascar chicletes, pois Ana vive na escuridão de uma vida automática que ela levara até ali, mas que ainda não se sente preparada para quebrar com esse paradigma da vida d a mulher pautada no pensamento androcêntrico, uma que:

A libertação da mulher envolve um percurso longo e árduo, pois é necessário desconstruir os conceitos tradicionais, redesenhar os papéis de homens e mulheres e prepará-los para assumir as novas tarefas com igualdade e respeito. (ZINANI, 2006, p.102).

As emoções são próprias do ser humano, podendo também ser responsáveis por demonstrar insatisfação com algo por parte do sujeito, uma vez que as emoções vêm do mais íntimo do ser, elas são, portanto o espelho da alma do sujeito, no caso, de Ana, mulher que precisa mais do que uma lar para cuidar para se sentir realizada como sujeito agente, pois de acordo com (BEAUVOIR, 1980), a mulher foi destinada tradicionalmente ao casamento, sendo que até hoje a maioria das mulheres são casadas, ou foram ou ainda serão e sofrem se não são, no entanto o casamento sempre se apresentou de maneira bem diferente para o homem e para a mulher mesmo sendo o homem e a mulher necessários um para o outro, essa necessidade nunca representou nenhuma reciprocidade, pois os homens se realizam como esposos e pais enquanto que as mulheres são integradas como escravas ou vassalas, uma vez que estas já veem de um grupo familiar dominado pelos pais e irmãos e sempre a mulher foi dada em casamento aos homens por outros homens, sendo as mulheres de certa forma forçadas pela sociedade prestarem serviço ao seu esposo, de certa forma são obrigadas a contrair matrimônio, sendo que se preferem ficarem solteiras, tornam-se socialmente ridículas. Dessa forma se pode dizer que a mulher está votada à perpetuação da espécie e à manutenção do lar, isto implica na sua imanência, o casamento além de escravizar a mulher a um homem faz dela dona de um lar, nos lares burgueses as moças são incapacitadas de ganhar a vida, podendo estas somente vegetar como um parasita no lar paterno ou aceitar ser uma subalterna em algum lar estranho, o do marido, sendo assim “o princípio do casamento é obsceno porque transforma em direitos e deveres uma troca uma troca que basear-se num impulso espontâneo” (BAAUVOIR, 1980, p.191). A mulher pode ser feliz sim sendo casada, mas para isso é preciso primeiro ela ter se encontrado em obras e atos, o homem se interessa pelo seu interior porque ascende ato de universo e pode afirmar-se em projetos, enquanto que a mulher está encerrada na comunidade conjugal vivendo sem poder transcender-se, nesse reino que está mais para prisão o que significa dizer:

Legiões de mulheres não têm por quinhão senão uma fadiga indefinidamente recomeçada no decorrer de um combate que jamais comporta em vitória. Mesmo em casos mais privilegiados, essa vitória nunca é definitiva. Há poucas tarefas que se apresentem, mais que as da dona de casa, ao suplício de Sísifo; dia após dia, é preciso lavar os pratos, espanar os móveis, consertar a roupa, que no dia seguinte já estão novamente sujos, empoeirados, rasgadas. A dona de casa desgasta-se sem sair do lugar; não faz nada, apenas perpetua o presente; não tem a impressão de conquistar um Bem e sim de lutar indefinidamente contra o Mal. É uma luta que se renova todos os dias (BEAUVOIR, 1980, p.199-200).

 A mulher quando solteira tem mais chances de se transcender como pessoa, mas depois de casada se vê encerrada dentro de um lar, numa prisão sem muros, sem grandes chances de mudar sua condição de subjugada, Ana, anda por uma rua comprida e com muros amarelos, antes de chegar ao Jardim Botânico, onde por um momento se sente livre, é preciso estar ela fora de casa para sentir tal sensação.

Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. [...]. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico. [...]. Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. [...]. Tudo era estranho, suave demais, grande demais. Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida [...]. Inquieta, olhou em torno. [...]. A crueza do mundo era tranquila. [...]. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante. [...]. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio [...]. O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno. Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo. (LISPECTOR, 2009, p.24-25).

Ao se deparar com uma rua comprida e muros altos e amarelos, para Ana, essa situação representa a seguinte configuração: a rua comprida representa um espaço onde ela pudesse caminhar refletindo sobre o sentido de sua vida, o muro alto, significa uma barreira para ela se sentir protegida ou talvez presa ainda a esse mundo medíocre em que ela vive, pois “lavar, passar, varrer, descobrir os flocos de poeira escondidos sob a noite dos armários, é recusar a vida” (BEAUVOIR, 1980, p.201). E por que os muros são amarelos e não de outra cor? O amarelo, segundo (KAMPUSKY,2005) é a cor representativa dos deuses, da eternidade, da fé, da iluminação, da riqueza e da opulência, havendo assim um paradoxo entre viver o tédio do cotidiano de ser simplesmente uma dona de casa a famosa “rainha do lar” e se arriscar num mundo totalmente novo e desconhecido até então por Ana. Ela opta por este mundo doméstico, mais por representar para ela uma segurança e não por aceitá-lo ou por se considerar uma “rainha do lar”, pois agora Ana sabe que não é rainha de coisa nenhuma que está mais para “vassala do lar” o que está muito longe de um título de nobreza, sua opção mesmo que forçada pela pressão social está metaforizada na figura do filho, quando ela o abraça com força, como quem se agarra ao seu confortável mundo que é sua casa, seus filhos e seu marido apesar de não aceitar mais certas verdades que antes eram inquestionáveis.

4.3 A desalienação latente de Ana

Como afirma (BEAVOUIR, 1980), todo indivíduo que procura justificar sua existência, sente essa necessidade porque precisa se transcender, a mulher como todo ser humano, precisa de uma liberdade autônoma, precisando descobrir-se e escolher-se num mundo em que o homem lhe impõe a condição do Outro, pretendendo este torná-la objeto e votá-la à imanência, sendo assim sua transcendência será sempre transcendida por outra consciência essencial e soberana [a dos homens].  A mulher sofre esse drama, esse conflito entre a reivindicação fundamental de todo sujeito que se põe sempre como o essencial e as exigências de uma situação que a constitui como essencial, sendo que muitas vezes a própria mulher aceita e reconhece que o universo é em todo seu conjunto masculino, universo esse que os homens modelaram, dirigiram, dominaram e ainda hoje o dominam, mas como pode se realizar um sujeito dentro de uma condição feminina em um universo machista? Quais caminhos e possibilidades lhe são abertas? Como encontra independência no seio da dependência? Que circunstâncias restringem a liberdade da mulher e quais ela pode superar?  Ana vive esses conflitos, conflitos estes que giram em torno do bem e do mal, do amor e do ódio, gerando uma crise individual em Ana o que será analisado neste trabalho.
Como já foi dito Ana não se encontra satisfeita com sua condição de mulher, que cuida somente da casa, dos filhos e do marido, o episódio do cego na parada do bonde, faz com que ela refletisse sobre a vida que até então levara, desde então há uma desalienação por parte de Ana, uma desalienação mesmo que seja subjetiva onde em ela se faz perceber como mulher e que sendo mulher, é como todo ser humano detentor do direito de escolhas para sua vida.
Ana, certa hora da tarde se encontra sozinha, essa hora é considerada por ela a mais perigosa do dia, pois já que se encontra a só consigo mesma e é neste horário que mora o perigo, pois ela cessa seu trabalho repetitivo e pode pensar no significado de sua vida, correndo o risco de se encontrar consigo mesma:

 Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa. [...] Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. (LISPECTOR, 2009.p.19-21).

Ana mesmo repensando o significado de sua vida, não se permite a uma mudança, ela sabe que sua vida poderia ser diferente, mas preferiu usar seus dons artísticos para o serviço doméstico, ao invés de usá-los profissionalmente. Ela tem convicção de que as pessoas quando desejam, podem dar o rumo que quiserem a sua vida, na medida em que “a vida podia ser feita pela mão do homem” (LISPECTOR, 2009, p.20), ou seja, cada pessoa pode decidir o que quer para sua vida, mas também, pode deixar que os outros decidam o que fazer com ela, é o que acontece com Ana pois sua vida é dos outros e não tem lugar  para seus desejos e anseios, ela se esquece de se desalienar se sufocando de maneira a não aparentar  a ninguém e finge que é feliz com sua vida repetitiva, enquanto que por dentro ela está totalmente mudada, mesmo aceitando viver sem felicidade nenhuma, pois a felicidade estava fora do seu alcance, afinal tinha uma família perfeita, tinha “filhos e maridos verdadeiros” (LISPECTOR, 2009,p.20). Esquecera sua juventude, que agora perecia uma doença vivia agora uma vida comportada de adulto que ela mesma escolhera, isso de uma certa forma lhe bastava pois como a própria Ana dizia “sem felicidade também se vivia” (LISPECTOR, 2009,p.20), ela preferia a certeza de uma vida monótona mas calma e tranquila a incerteza do questionamento, da não aceitação e assim correr riscos de perder sua situação confortável  de mãe, mulher e perfeita dona de casa, enfim ela aceita o tédio:

Com efeito, muitas vezes a mulher se vinga do tédio [...]. Cala suas queixas [...]. Os filhos não lhe trazem tampouco divertimento ou paz: refeição e noite decorrem em meio a vago mau humor [...]. Adormece, desiludida, irritada [...]. A sorte das mulheres é tanto mais dura quanto mais pobres e sobrecarregadas de trabalhos; melhora quando têm lazeres  e distrações ao mesmo tempo. Mas este esquema- tédio, espera decepção- se encontra em muitos casos. (BEAUVOIR, 1980, p. 238).

Será que Ana escolhera mesmo essa vida? Ou será que a sociedade em que ela vivia lhe impôs esse tipo de pensamento, sabendo que a forma de pensar do sujeito também é fruto da sociedade onde este está inserido, pois se sabe que nas sociedades falocêntricas a mulher é condicionada desde a infância a aceitar seu destino de mulher, ou seja, aceitar os afazeres domésticos como se fossem funções naturais da mulher e associados à maternidade:

Os trabalhos domésticos a que está votada, porque só eles são conciliáveis com os encargos da maternidade, encerram-na na repetição e na imanência; reproduzem-se dia após dia sob uma forma idêntica que se perpetua quase sem modificação através dos séculos; não produzem nada de novo [...] Sua desgraça consiste em ter sido biologicamente votada a repetir a Vida, quando a seus próprios olhos a Vida não apresenta em si suas razões de ser e essas razões são mais importantes do que sua vida [...] Em verdade, as mulheres nunca opuseram valores femininos aos masculinos; foram os homens, desejosos de manter as prerrogativas masculinas, que inventaram essa divisão: entenderam criar um campo de domínio feminino- reinado da vida, da imanência. (BEAUVOIR, 1980, p.83-84).

Depois de Ana ter visto o cego na parada do bonde, tudo mudou em sua vida, pois daquele dia em diante ela nunca mais foi como ela era, ou pelos menos pensava que era. Ana acorda para a realidade da sua vida, agora sente mal-estar em relação seu estado de imanência, mostrando interesse por querer se libertar das amarras enfadonhas do dia a dia, mas ao mesmo tempo lhe falta coragem suficiente para realizar tal vontade:

Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito [...] O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram. (LISPECTOR, 2009, p.22-23).

Agora lhe veio uma crise de existencialismo, olhava as coisas como nunca havia olhado tudo agora era diferente, tudo agora corre perigo, o mundo agora é voraz e ela se torna impaciente, passou a vida toda cuidando para que a vida não explodisse, esforço em vão, pois o cego teve esse poder de despedaçar tudo isso, o seu modo de viver, sua imaginação, despertando em Ana novos sentimentos, emoções e sensações, tudo para ela até aquele dia era calmo e tranquilo até que:

O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. (LISPECTOR, 2009, p.23).

              Ao ter descido na parada errada Ana vagueia meio desorientada pelas ruas até chegar ao Jardim Botânico, não havia ninguém por lá e ela aproveita para refletir sobre sua vida em contato com a natureza em harmonia com a vida selvagem já que a maioria das personagens de Clarice vive em busca do Coração Selvagem, por julgar os animais melhores em relação aos sentimentos do que os homens. Ana passou muito tempo refletindo meio extasiada em um encontro consigo mesma, estava inquieta e começou ali mesmo um processo de desalienação secreta proporcionado agora pelo ambiente natural do Jardim Botânico:

 Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto [...]. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite. [...]. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo. [...] Inquieta, olhou em torno. [...]. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber (LISPECTOR, 2009, p.23-24).

Ana agora é diferente, pensa diferente, mas ainda não é capaz de agir de forma diferente, sente agora que algo se rompeu e não há como ficar indiferente a isso, pois agora é uma nova mulher e mesmo se sentindo culpada, seu coração se enche de vontade de viver, de ser livre e de se desalienar já que o episódio do cego a fizera enxergar coisas antes imperceptíveis para ela, tudo isso é muito novo e difícil para ela administrar, pois tudo que era tranquilo havia se quebrado sua rotina de dona de casa conformada com a mesmice repetitiva e maçante. Diante de tudo isso Ana, de sua transcendência introspectiva, prefere a segurança de um lar com marido e filhos, aconchego da cama com seu marido, pois isso acaba com o perigo de uma vida baseada em tudo que ela tinha passado e pensado durante aquele dia que para ela teria sido um marco na sua maneira de pensar:

 Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver[...]Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada[...] O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo?[...] Hoje de tarde alguma coisa tranquila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver. Acabara-se a vertigem de bondade.  E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia. (LISPECTOR, 2009, p.27-29).

Depois de todos esses acontecimentos, Ana reflete sobre sua vida, até tenta agir de maneira diferente, mas volta a sua realidade para se sentir protegida pelo lar e pela família, se entregando a esse mundo, desistindo do outro que ela conheceu quando viu o cego e isso se afirma no fato de Ana ter ido dormir no aconchego do seu quarto, tomada pela mão do marido, sem olhar para trás na tentativa de se afastar definitivamente do perigo de viver, que se metaforiza  na volta à tranquilidade cotidiana, após uma aventura, equivalente a outra maneira de ver o mundo e mesmo esse momento de descoberta sendo próprio e positivo, Ana se agarra ao universo que sempre vivera, um universo restrito que poderia ser agora diferente se ela tivesse tido a coragem de mudar de vida, apesar de tudo isso Ana  não é mais  a mesma mulher que era antes de despertar ao ver o cego na parada a mascar chicletes.





CONSIDERAÇÕES FINAIS

Averiguou-se neste trabalho como se deu o início da ruptura das tendências androcêntricas na literatura brasileira de autoria feminina, tendo como objeto de análise o conto Amor de Clarice Lispector, onde se investigou por meio da personagem principal Ana como se deu esse começo de rompimento dos modelos patriarcais que até então predominavam na literatura, pois até aí a literatura era feita por homens e para os homens.
Durante o desenvolvimento deste trabalho, pode-se perceber que a crítica feminina contribuiu muito para a literatura de autoria feminina e que as questões de gênero no campo da literatura ganharam corpo nos últimos anos mais precisamente nos 60, muito foram as teóricas que buscaram quebrar tabus em relação à escrita femininas tais como Kate Millet, Eliane Showalter, Simone de Beauvoir entre outras. Surgiram muitas correntes feministas, mas somente duas se faz perceber até hoje, a crítica feminina francesa que trata das questões de sexo e escrita e a crítica feminina anglo-americana de visão mais ampla sobre o assunto.
Quando se fala em quebrar paradigmas em relação à literatura de autoria feminina, Clarice Lispector foi a primeira no Brasil a ter esse tipo de visão, na obra Laços de Família ela vai contra todo um modo de escrever até aquele momento, essa coletânea é composta por contos que questionam o modelo de família vigente  contrariando os modelos de literatura centradas na lei do pai, ou seja, escrita de  forma a opor-se aos modelos patriarcais e androcêntricos.
Ao analisar o conto Amor, percebeu-se que a personagem Ana vive alienada, leva uma vida normal de acordo com o pensamento androcêntico, sua vida é automática. Preocupada apenas com seus afazeres domésticos, ela está totalmente alheia e vive sua rotina enfadonha como se tudo isso fosse muito normal, até que um dia ao sair para fazer compras, ela vê um cego na parada de bonde mascar chicletes como se estivesse sorrindo ao fazer aquele movimento repetitivo com as mandíbulas, o homem na escuridão da sua cegueira parecia ser feliz sem sofrimento algum, isso passou a incomodar, porque ela pensava que aquele homem era feliz mesmo com as dificuldades imposta pela a vida ele parecia não ter nenhuma restrição para ser feliz, enquanto que ela vivia em um mundo restrito e sem esperança, havia somente angústia e melancolia sua vida era parada e sem perspectiva, por causa dessa situação acontece o estalo que faz com que Ana comece um processo de desalineação, começa ela então a se descobrir e perceber que a vida pode ser muito mais que uma casa, filhos e marido para cuidar. Essa desestabilização do mundo de Ana é representada no solavanco do bonde nos trilhos, nos ovos que se partem deixando escorrer as gemas, no ato  viol4nto de Ana ao esmagar uma  formiga que caminhava tranquila  pela cozinha, num empurrão que uma mulher dar no filho no meio da rua, na decomposição das folhas e galhos de árvores no Jardim Botânico bem como na quebra do silêncio provocada   pelos ruídos e movimentos dos animais presente neste local. No balançar das árvores e no estouro do fogão.
Constatou-se então que o conto analisado pertence a segunda fase da crítica feminista , chamada de feminist (feminista), neste contexto há sim um rompimento com os valores andrcêntricos, mas ainda de certa forma se apresenta ligada ao patriarcalismo, uma vez que não está totalmente desvinculada dos valores patriarcais, consoante que Ana por mais que tenha percebido o automatismo em que vivia não consegue romper essa postura, uma vez que ela tem medo de sofrer as consequência que um novo modo de vida pode lhe trazer, preferindo ela ficar na mesmice o que não significa dizer que ela não sofrera uma delalienação, a não aceitação de certos valores ligados ao casamento, a profissão de dona de casa pode não ter se explicitado, mas com certeza introspectivamente há uma desalienação latente por parte de Ana.











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