UNIVERSIDADE
ESTADUAL DO MARANHÃO- UEMA
CENTRO
DE ESTUDOS SUPERIORES DE CAXIAS- CESC
DEPARTAMENTO
DE LETRAS
FRANCISCA
LUCILENE SANTOS DA SILVA
UM OLHAR DE OPOSIÇÃO ÀS TENDÊNCIAS
ANDROCÊNTRICAS NO CONTO AMOR DE
CLARICE LISPECTOR
T
CAXIAS-MA
2013
FRANCISCA
LUCILENE SANTOS DA SILVA
UM OLHAR DE OPOSIÇÃO ÀS TENDÊNCIAS
ANDROCÊNTRICAS NO CONTO AMOR DE
CLARICE LISPECTOR
Monografia
apresentada ao Curso de Especialização em Literatura e Ensino do Centro de
Estudos Superiores de Caxias da Universidade Estadual do Maranhão (CESC-UEMA)
como requisito para obtenção do título de Especialista em Literatura e Ensino
Orientador (a):
Profª. Me. Sueleny Ribeiro Carvalho
CAXIAS-MA
2013
S586u
Silva, Francisca Lucilene Santos da
Um olhar de oposição às tendências androcêntricas no conto Amor de
Clarice Lispector / Francisca Lucilene Santos da Silva.__Caxias-MA:
CESC/UEMA, 2013.
53f.
Orientador: Profª. Ma. Sueleny Ribeiro
Carvalho.
Monografia (Especialização em Literatura e
Ensino) – Centro de Estudos Superiores de Caxias-MA, Curso de Especialização
em Literatura e Ensino.
1.
Ensino. 2. Patriarcalismo. 3. Androcentrismo. 4.
Desalienação. I. Título.
CDU 821.134.3(81)-34
|
FRANCISCA
LUCILENE SANTOS DA SILVA
UM OLHAR DE OPOSIÇÃO ÀS TENDÊNCIAS
ANDROCÊNTRICAS NO CONTO AMOR DE CLARICE LISPECTOR
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao
Departamento de Letras do CESC/UEMA, como requisito para obtenção do título de
Especialista em Literatura e Ensino
Orientador
(a): Profª. Me. Sueleny Ribeiro Carvalho
Aprovada
em _____ /_____/_____.
BANCA
EXAMINADORA
.__________________________________________________.
Sueleny Ribeiro Carvalho (Mestre em Letras CESC/UEMA)
.__________________________________________________.
Algemira de Macedo Mendes(Doutora em Letras
CESC/UEMA)
._________________________________________________.
Silvana
Maria Pantoja dos Santos (Doutora em Letras UESPI)
AGRADECIMENTOS
- A Deus, fonte de misericórdia e sabedoria;
- Aos meus pais Raimundo Nonato (In Memorian) e Inalda dos Santos, responsáveis pela pessoa que sou hoje;
- A todos os professores do Departamento de Letras, em especial à professora orientadora Sueleny Ribeiro Carvalho, pelo apoio dado durante a realização deste trabalho;
- A Fátima e a Francinete, amigas que me apoiaram durante todo curso;
- A todas as pessoas que acreditaram e acreditam em mim e se mantiveram ao meu lado, incentivando-me, fortalecendo-me e ajudando-me durante essa trajetória.
Aos homens a
sociedade reservava o espaço público e tudo aquilo era e é dessa esfera;
consequentemente, à mulher tudo o que concernia e concerne ao doméstico, a casa,
ao lar. O ideal acadêmico destinava-se aos meninos, enquanto as prendas domésticas
cabiam às meninas.
Nazilda Martins de
Barros Moreira
RESUMO
O presente trabalho visa fazer uma análise do conto Amor do livro Laços de Família de Clarice
Lispector, fundamentado na critica feminista, observando de que forma esta contribuiu
para o processo de autodescoberta das mulheres, discutindo as causas de
opressão fermina a partir do conceito patriarcal de literatura. Aqui também
será analisado como se deu a ruptura do pensamento androcêntrico, identificado
na voz feminina através da literatura, considerando tudo que possa vir servir
de base e como alerta contra as questões patriarcais até então vigentes, como
por exemplo, as características físicas e psicológicas da personagem principal
do conto a ser analisado, no intuito de demostrar insatisfação por parte da
personagem em questão com a condição da mulher naquela sociedade, verificando
como ocorre essa tomada de consciência. Além disso, pretende-se averiguar se
houve ou não por parte da personagem principal do conto, desalienação, levando-a
a uma reflexão sobre sua condição de mulher. Esse trabalho está fundamentado em
estudos de teóricos que versam sobre a questão de gênero na literatura, que
dentre outros se pode citar: Beauvoir(1980), Zolin(2005), Duarte(2002), Zinani(2006),
Campadelli(1988) cujos pensamentos norteiam e procuram melhorar o processo de autoconsciência
da mulher por meio da literatura.
Palavras-chaves:
literatura. mulher. patraircalisamo.
androcentrismo. desalienação.
ABSTRACT
The present work aims to analyze the story Love, from the book Family Ties by Clarice Lispector, based on feminist criticism, observing how this contributed to the self-discovery process of women, discussing the reasons of female oppression from the patriarchal concept of literature. Here is also analyzed how was the rupture of androcentric thinking, identified in the female voice through literature, considering everything that might serve as a base and as a warning against patriarchal issues force until then, such as the physical and psychological characteristics of main character of the tale to be analyzed in order to demonstrate dissatisfaction with the character in question, regarding the status of women in that society, seeing how this awareness occurs. Furthermore, it’s intended to be investigated whether there was by the main character of the story, desalienation, leading her to reflect on her womanhood. This work is based on theoretical studies that deal with the issue of gender in literature; among others one can be mentioned: Beauvoir (1980), Zolin(2005), Duarte(2002), Zinani(2006), Campadelli(1988) whose thoughts guide and seeking to improve the process of self-consciousness of women through literature.
Keywords: literature. woman. patriarchalism. Androcentrism. disalienation.
SUMÀRIO
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS----------------------------------------------------------------------9
2 MULHER E LITERATURA: CONTESTAÇÃO A
VALORES INSTITUÍDOS -------12
2.1 Histórico da Crítica Feminista:
Contribuições para a literatura de autoria feminina-------------------------------------------------------------------------------------------------12
2.2 Escrita Feminina: A hora de quebrar
paradigmas-----------------------------------18
3
O INÍCIO DA RUPTURA DO PENSAMENTO ANDROCÊNTRICO NA LITERATURA BRASILEIRA DE AUTORIA FEMININA------------------------------------26
3.1
Clarice Lispector: Vanguarda e introspecção-----------------------------------------26
4
LAÇOS DE FAMÍLIA: UMA OBRA DE CARÁTER QUESTIONADOR ACERCA DA IMANÊNCIA DA
MULHER DENTRO DA FAMÍLIA BURGUESA -----------------32
4.1
Laços de família: convenções e
aprisionamento------------------------------------32
4.2 Ana: satisfação em ser apenas rainha
do lar?----------------------------------------35
4.3 A desalienação latente de Ana -------------------------------------------------------------43
CONSIDERAÇÕES FINAIS------------------------------------------------------------------------49
REFERÊNCIAS----------------------------------------------------------------------------------------51
1
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Cada
vez mais as questões de gênero vêm se tornando objeto de estudo em diversas
áreas do conhecimento assim como na Literatura e na Crítica Literária, com mais
frequência as relações de gêneros vem se figurando entre os temas abordados em
encontros, congressos, bem como se constituindo em motivo de tema em teses e
trabalhos de pesquisa. Essa vertente da crítica literária tem assumido papel
questionador da prática acadêmica patriarcal, afirmando que a experiência da
mulher como leitora e escritora é diferente da masculina, implicando em
significativas mudanças no campo intelectual, marcadas pela quebra de
paradigmas e pela descoberta de novos horizontes de expectativas, como a
mudança de mentalidade das mulheres em ralação a essa questão e o aparecimento
de estudos sobre a literatura feita por mulheres. Estudos acerca de textos
literários canônicos mostram inquestionáveis correspondências entre sexo e
poder, considerando as circunstâncias sócias históricas como fatores
determinantes na produção da literatura, sendo assim até pouco tempo só os
homens podiam mostrar seus pensamentos acerca do mundo através da literatura.
A
importância da ginocrítica para os estudos de gênero é bem relevante, pois
propõe uma abordagem diferente da crítica feminista, prevendo a não revisão da
literatura masculina, mas concentração na escrita feminina de maneira
exclusiva, redefinindo assim as diferenças entre a escrita de mulheres e
homens, já que os estudos feministas não eram bem aceitos pela academia como
literatura, os estereótipos femininos abordados pela literatura masculina eram
os da mulher boazinha, meiga, delicada e submissa, aquela que foi educada para
casar e se contentar em cuidar dos filhos e do marido, a crítica literária
feminina, veio para romper com esse pensamento.
Partindo
da primícia de que as mulheres podem mudar de posição social abarcando desde
reformas culturais, legais e econômicas, chegando até às reformas relacionadas
ao modo de ler e produzir o texto literário faz-se necessário uma reflexão
sobre esta temática, por isso a importância de estudar as questões de gênero e
como se deu o processo de ruptura do pensamento androcêntrico no campo da
literatura, através de um olhar de oposição às tendências androcêntricas no
conto Amor de Clarice Lispector.
Tendo em vista o exposto, a
presente pesquisa visa analisar como se deu o início da ruptura do pensamento
androcêntrico na literatura, com base na critica literária feminista, fazendo
uma análise do conto Amor do livro Laços de Família (1960) de Clarice Lispector,
discutindo as causas de opressão feminina a partir do conceito patriarcal, com
a finalidade de averiguar se houve ou não desalienação por parte da personagem
principal do conto em questão, levando-a ou não a uma reflexão no que tange
seus anseios como mulher naquela sociedade.
Os contos de Laços de
Família (1960) ironizam o modelo patriarcal vigente, onde a mulher jaz no
espaço privado, por isso questionam e procura encontrar soluções para os
impasses criados , como se pode vislumbrar no conto Amor, objeto central de estudo desse trabalho, protestando contra
os valores falocêntricos, mas ainda não se desvincula totalmente ainda dos
modelos patriarcais, havendo assim apenas o início da ruptura do pensamento
androcêntrico, ou seja, o começo de uma reflexão a caminho da mudança, pois
apesar do enredo do texto ocorrer em um ambiente aparentemente calmo e
tranquilo, a personagem Ana não se presenta contente com essa situação de
aparente tranquilidade, de mesmice e monotonia, tudo se desestabiliza de súbito,
esses lampejos a respeito do comtiano faz com que a personagem seja uma mulher
diferente. Levando em consideração esses posicionamentos, faz-se necessário os
seguintes posicionamentos: de que forma Ana demonstra insatisfação com os
padrões vigentes dentro de uma sociedade dominada pelos homens? Como a
protagonista do conto em questão se descobre como mulher oprimida em uma
sociedade falocêntrica? De que maneira se pode notar se há ou não desalienação
por parte da personagem Ana? Ana reflete de maneira questionadora acerca do
papel exercido por ela, levando em conta sua condição de mulher?
O presente trabalho consta
de objetivos explorativos sobre o rompimento das tendências androcêntricas na
literatura brasileira que serão desenvolvidos seguindo os seguintes passos:
pesquisa de cunho bibliográfico e multimidiático, buscando autores que escrevem
sobre esta temática, visando uma fundamentação teórica consistente no que diz
respeito à problemática investigada; identificação por meio de pressupostos
teóricos de como se deu a ruptura das tendências androcêntricas na literatura
na linha do tempo; considerações sobre a vida e obra da autora em questão e
finalmente a análise do conto Amor
verificando como a personagem principal rompe com um processo de alienação em que
vive, começando e a partir daí a questionar seu papel como sujeito agente na
sociedade em que vive.
O trabalho está dividido em
quatro partes: Na primeira parte encontra-se as considerações iniciais onde é
feito um apanhado geral sobre o trabalho; na segunda parte é tratada a relação
mulher/literatura, bem como as contribuições da critica feminista para a literatura
de autoria feminina, na terceira parte fala-se da escrita de autoria feminina como suporte
para a quebra de paradigmas na literatura além disso é feita algumas
considerações sobre a escrita da autora Clarice Lispector, na quarta parte há uma
abordagem sobre a ruptura do pensamento androcêntrico na literatura brasileira,
constando a análise do conto Amor no
que tange à desconstrução do pensamento androcêntrico na obra.
De acordo com o que foi
abordado pretende-se mostrar como se deu a ruptura do pensamento androcêntrico
na literatura brasileira, mais especificamente no conto Amor de Clarice Lispector, bem como a verificação, através da personagem
principal Ana, das formas que a mulher, aqui representada pela personagem, encontra para demonstrar
insatisfação com a situação de subjugação a que é submetida, verificando se
houve ou não desalienação por parte da personagem.
2
MULHER E LITERATURA: CONTESTAÇÃO A VALORES INSTITUÍDOS
2.1 A Crítica Feminista: Contribuições para a
literatura de autoria feminina
Segundo (ZOLIN, 2005), a crítica feminista
propriamente dita tem seu marco inicial com a publicação de Sexual Politcs, de Kate Millet (1970), a obra supera o aspecto
puramente literário, com uma aguçada consciência política, discute questões
sobre a posição secundária ocupada pelas heroínas dos romances de autoria
masculina, bem como a das escritoras e críticas literárias, como se os leitores
fossem puramente masculinos, não se perguntando se as mulheres gostam de ler o
que eles escrevem, além disso, aponta para a desconstrução dos padrões sociais,
edificados pela cultura a que as mulheres pertencem para servir ao propósito da
dominação social e cultural masculina, discutindo as causas de opressão
feminina a partir do conceito de patriarcado, a lei do pai, no diz respeito ao
papel da mulher, tanto no âmbito doméstico e social, uma vez que ao longo dos
séculos vem sendo culturalmente ensinado como próprio da natureza feminina,
pois:
Essa política de força, segundo a teórica , afeta a
literatura na medida
em que os valores literários têm sido moldados pelo homem. Ela pondera
que, nas narrativas de autoria masculina, as convenções dão forma às aventuras
e moldam as conquistas românticas segundo direcionamento masculino. Além disso,
são construídas como se seus leitores fossem sempre homens, ou de modo a
controlar a leitora para que ela leia, inconsequentemente como um homem. (ZOLIN,
2005. P 190).
As discussões em torno de
questões de gênero envolvendo identidade e subjetividade ganharam corpo, nos
últimos anos, em todos os campos do conhecimento e com a literatura não foi
diferente, essa mudança pode ser analisada no campo da literatura através da
crítica literária, mais precisamente sob a ótica da crítica literária feminista,
crítica esta que procura “definir o sujeito mulher, verificar as práticas
culturais através das quais esse sujeito se apresenta e é apresentado, bem como
reconhecer as marcas de gênero que especificam os modos de ser masculino e
feminino, além de sua representação na literatura” (ZINANI, 2006.p 19 e 20).
Desde
a sua origem, a crítica feminista vem procurando questionar a prática
patriarcal na literatura, implicando em significativas mudanças no campo
intelectual, rompendo paradigmas e descobrindo novos horizontes de expectativas
nos estudos com textos literários, uma vez que:
Sempre foi muito difícil para a academia aceitar os
estudos feministas como uma abordagem de análise literária [...]. Os romances
de José de Alencar - Lucíola, Senhora e Diva - formavam uma tríade de perfis
femininos amplamente estudados por pesquisadoras de todo o Brasil. Portanto,
uma das formas de estudar a mulher na literatura foi (e ainda é) através dos
escritos dos homens, única voz considerada autorizada a fazer arte, até porque
se acreditava que o gênio artístico guardava uma porção divina da qual as
mulheres não faziam parte, pelo menos na condição de criadoras. No máximo,
chegavam a ser musas a inspirar. A historiografia literária no Ocidente sempre
foi uma atividade reconhecidamente masculina, mas isso não impediu que as
mulheres escrevessem. (LEIRO, 2010.
sp).
Nesse
mundo literário dominado pelos homens, Clarice Lispector escreve os contos do
livro Laços de Família, contos estes
que mesmo de maneira sutil, fazem o leitor refletir sobre o papel ocupado na
sociedade pela mulher, pois estes textos versam sobre essa situação de
imanência vivida por elas, mesmo não achando soluções para os impasses
que são encontrados. O conto o “Amor”
que será analisado está inserido fase feminista (feminist) que ainda não é
totalmente desligada do patriarcalismo, foi escrito em 1974, período em a que mulher
era caracterizada pela ausência de direitos. O texto conta a história de Ana
relatando seu cotidiano na realidade e na imaginação. É um texto com o típico
conflito à moda de Clarice, pois:
A protagonista, esposa/ mãe/dona de casa, depois de
uma juventude intensa, enquadra-se no “destino de mulher” e refaz diariamente a
rotina doméstica, até que vê na rua um cego mascando chiclete; percebe-se,
então, num lampejo de lucidez, presa ao automatismo e imersa na escuridão. A
explosão, provocada pelo encontro com o cego, revela-lhe um mundo até então
apaziguado (XAVIER, 2002, p.160).
Percebe-se perfeitamente aqui a tríade que oprime a
protagonista Ana, pois para ela, apenas ser esposa, mãe e dona de casa não lhe
bastava, ela precisava de algo a mais para se realizar como pessoa, o encontro
com o cego a faz refletir sobre algo que precisa mudar e a partir da dali sua
vida nunca será mais a mesma.
Showalter (1994) apud Zinani divide a crítica
feminista em duas correntes: a crítica ideológica também chamada de crítica
feminina, centrada na mulher como leitora e a ginocrítica que se preocupa com a
mulher como escritora, esta primeira procura representar os estereótipos da
mulher na literatura, fazendo apenas uma revisão da teoria masculina, se
espelhando nos modelos já existentes, não havendo nenhum rompimento com as
questões androcêntricas, no entanto, a segunda, de acordo com (ZOLIN, 2005) se
ocupa de várias questões como noções de gênero, classes, raça em relação à
essencialidade da mulher; recuperação da identidade feminina; noções de representação
literária, de autoria e de leitor/leitora, noção de cânone literário e crítico
e discute a problematização, no que tange às possibilidades de intervenções nas
relações sociais. A ginocrítica se preocupa com a mulher enquanto escritora
investigando os aspectos relacionados à sua produção literária, identificando
as especificidades da escrita feminina, como ela se faz sujeito na sua história,
seu estilo, suas temáticas, seus gêneros e estruturas de escrita, pois a mulher
é psicodinâmica e criativa, ressaltando sua trajetória profissional individual
ou coletiva salientando a evolução e leis da tradição literária feminina. Esta
última teoria foi definida como:
[...] o estudo da mulher como escritora, e seus
tópicos são a história, os estilos, os temas, os gêneros e estruturas dos
escritos femininos; a psicodinâmica da criatividade feminina; a trajetória da
carreira feminina individual ou coletiva; e a evolução e as leis da tradição
literária de mulheres (SHOWALTER Apud SOUSA, 2002. p. 128).
A teoria
da ginocrítica, por se tratar de uma abordagem diferente da crítica feminista,
ou seja, se concentra numa escrita puramente feminina, trouxe à tona a
discussão pelos adeptos da escrita masculina de que a imaginação literária não
está relacionada ao sexo e que uma redefinição da história literária em termos
feminista estaria criando uma forma de discriminação sexual, pois imaginação
criadora é uma só, no ponto de vista da tradição androcêntica. A crítica
literária feminina é política na medida em que interfere na condição social,
desconstruindo formas de preconceito e ideologias de gêneros, construídas
durante a história, de maneira cultural além de promover o censo crítico e
mudanças de mentalidade sobre as convenções que historicamente aprisionaram a
mulher,
sendo que:
Durante
muitos anos, a mulher, apesar de sua presença física inegável na sociedade,
teve sua voz calada em um universo que lhe dispensara papéis de submissão,
condenando-lhe a um silêncio que a rotulava de ‘incapaz’ de manifestar ou
produzir um discurso que pudesse se igualar ao discurso do homem, tendo,
inclusive, limitado seu espaço de circulação, uma vez que seu papel consistia
em desempenhar atividades diretamente ligadas aos assuntos do lar. Dessa forma,
merecendo apenas o espaço privado da casa. Casar era o destino das mulheres,
sua vida fora sempre, alheia a priori vivia sob a tutela do pai, para depois
viver à sombra do marido. (SOUSA, 2012, p.124).
Para (ZOLIN, 2005), as
circunstâncias socioeconômicas são fatores determinantes na produção literária,
por isso muitos críticos (as) feministas franceses e americanos,
principalmente, desde década de 1970, debateram sobre o espaço delegado à
mulher na sociedade e suas consequências e reflexos na literatura, tentando
quebrar com o pensamento tradicional de que a mulher tinha que estar em segundo
plano, em relação ao lugar ocupado pelo homem, marcada à submissão. Esses
discursos não só interferiram no cotidiano feminino, mas também, acabaram por
fundamentar os cânones críticos e teóricos tradicionais e masculinos que regem
o saber sobre literatura.
Simone de Beauvoir (1980) questiona as relações
entre os sexos, qual seja a mulher sempre como escrava e o homem como senhor.
Ela discute a situação da mulher através de uma perspectiva existencialista,
pela sua ótica, não basta apontar as relações de propriedade como responsáveis
pela opressão feminina, é também necessário,
explicar o porquê dessas relações de propriedade terem sido instituídas
contra a comunidade e entre os homens, pois:
O homem é sujeito, o absoluto; ela é o outro [...].
Ora, a mulher sempre foi, senão a escrava do homem, ao menos sua vassala; os
dois sexos nunca partilharam mundo em igualdade de condições; e ainda hoje,
embora sua condição esteja evoluindo, a mulher arca com um pesado handicap (restrições) [...] Economicamente, homens e
mulheres constituem como em duas castas; em igualdade de condições, os
primeiros têm situações mais vantajosas, salários mais altos, maiores
possibilidades de êxito que suas concorrentes recém- chegadas. Ocupam na
indústria, na política etc., maior número de lugares e postos mais importantes.
Além dos poderes concretos que possuem, revestem-se de um prestígio cuja
tradição a educação da criança mantém: o presente envolve o passado e no
passado toda história foi feita pelos homens (BEAVOUIR, 1980. p.125).
De acordo
com (ZOLIN, 2005) o
feminismo de Beauvoir, por um lado, oferece um estudo da opressão das mulheres
e por outro sugere formas de emancipa-las, pois não adianta conhecer o problema
se não se faz nada para mudar essa realidade, salientando que não existe uma
essência feminina responsável pela marginalização da mulher, existindo apenas o
que ela chama de situação da mulher: “o fato de a mulher dar à luz é tomado
como matriz das diferenças entre os sexos” (ZOLIN, 2005, p.188). Beauvoir
questiona as razões que levam a mulher se submeter à opressão, através da noção
da “má fé” de Sartre, onde diz que os seres humanos são livres, mas podem
enganar-se fingindo não sê-lo, sendo que:
No caso da mulher, os meios são
favoráveis para que esse processo se realize; sua fraqueza é estimulada. No
entanto, a má fé dos outros em anular-lhe a liberdade- que é inerente às sua
condição de ser humano- não é suficiente para plena realização dessa empreitada;
a mulher mesma aceita a opressão que lhe é imputada, tornando-se cúmplice da
própria escravidão (ZOLIN, 2005, p.188).
O feminismo existencialista de Beauvoir questiona o
privilégio dos homens, apontando para o fato de que a transcendência do homem como
ser humano não se choca com seu destino de homem, enquanto que a mulher vive
uma crise, dividida entre essa transcendência e seu destino de
mulher(maternidade, cuidar da família e submissão), a chamada imanência, sendo assim, por meio da situação de subordinada da mulher
, é negado a ela a expressão como ser
humano, prejudicando seu processo de autoafirmação como ser humano , isso
acontece por causa da crença enraizada na cultura e na História, de que a
mulher tem que ser sempre submissa, uma vez que a passividade faz parte de sua
natureza de mulher, esse fatores torna a
mulher um não sujeito, uma “coisa” dessa forma :
A mulher encerrada no lar não
pode fundar ela própria sua existência; não tem os meios de se afirmar em sua
singularidade e esta, por conseguinte, não lhe é reconhecida. Entre os árabes,
os índios e muitas populações rurais, a mulher é apenas uma criada, apreciada
segundo trabalho que fornece e substituída sem lamentações caso desapareça. Na
civilização moderna, ela é, aos olhos do marido, mais ou menos individualizada;
mas, a menos que renuncie inteiramente seu eu, obstinando-se (BEAUVOIR, 1980. p294).
Conforme (ZOLIN, 2005), a escritora e
ensaísta inglesa, Virgínia Woolf (1882-1941), foi uma das precursoras da
crítica feminista e impulsionou um novo olhar em relação ao tema mulher e
literatura até então marcada por toda a sorte de preconceitos e discriminações.
Ela afirma em um dos principais ensaios A
Room of One’s Own, que para a mulher escrever ficção ou poesia de qualidade
ela necessita de um “teto todo seu” em que possa trabalhar em paz e de uma
renda mensal capaz de lhe garantir independência, pois a mulher que nascesse
com o dom para escrever literatura, seria com certeza descriminada e teria que
viver sozinha. Outro aspecto importante da abordagem da escritora está
relacionado ao ressentimento das mulheres pelos homens,
pois muitos poemas escritos por mulheres do século XVII são marcados por
sentimentos negativos em relação aos homens, o que segundo ela, foi isso que impediu
o progresso da literatura de autoria feminina, como arte. Esse pensamento
reflete nos temas acerca dos prejuízos sofridos pela literatura, pelo fato de
se pensar em cada um dos sexos separadamente, pois:
A partir do princípio da androginia, ela pondera
que é natural que os sexos cooperem entre si [...] As grandes mentes não pensam
especialmente ou separadamente no sexo; são andróginas [...] Ao escreverem
apenas com o lado masculino do cérebro, parecem criar obstáculos na
comunicação; a emoção que lhes permeia a ficção é incompreensível à mulher [...].
Daí defender a necessidade de ser masculinamente feminina e feminina
masculinamente para que a arte se realize e comunique experiência com integridade
(ZOLIN, 2005, p.187).
Como se pode observar foram muitas as contribuições
da crítica feminista para a literatura de autoria feminina, neste contexto o
alvo da crítica feminista é o espaço delegado à mulher na sociedade bem como na
literatura, tentando romper com discursos sacramentados de que a mulher é inferior
e incapaz, uma vez quebrados esses conceitos, essa ideia passou a refletir não
somente na vida pessoal, mas também no cânone e critica sobre literatura.
Muitas foram as correntes feministas, porém duas
delas são percebidas hoje quando se fala em crítica feminista, a francesa
centrada nas questões de sexos e escrita e a anglo-americana, que ocupa das
mais variadas questões. As mais debatidas se referem a: noções de gênero,
classe e raça, noções de experiência, noções de representação literária de autoria
leitor/leitora, noção de cânone literário e crítico e a problematização do
projeto crítico feminista, no que diz respeito às possibilidades de
intervenções nas relações sociais.
(QUEIROZ, 1995 apud ZOLIN, 2005). Trata-se o feminismo de um movimento
político bastante amplo, percorrendo muitos caminhos até chegar a uma teoria
feminista acadêmica, voltado para reformas relacionadas ao modo de ler e
escrever o texto literário produzido por mulheres.
2.2
Escrita Feminina: A hora de quebrar paradigmas
Durante séculos a mulher foi
moldada para obedecer, era tratada como se não pudesse pensar e decidir sua
vida por si só, sob a ótica masculina a pessoa do sexo feminino era vista como
um ser incapaz de ser sujeito agente na sociedade, sendo criada para obedecer
ao pai e posteriormente ao marido, a sociedade valorizava tudo que estava
relacionado ao masculino, dessa forma a mulher não podia fugir às regras que
lhes eram impostas sob a pena de desagradar uma sociedade patriarcal e
consequentemente ser vista com maus olhos prejudicando a honra da família, era como
se a mulher vivesse numa espécie de casta onde esta não poderia ascender de
classe social à custa de sua competência para o trabalho fora do âmbito
doméstico, ou seja, na classe social que ela nascia nesta mesma classe social
ela permanecia até morrer :
Ela (a mulher) sempre se encontra sob
a tutela dos homens [...] ela fica sujeita à autoridade do pai ou do irmão mais
velho [...] ou se submete à autoridade do marido. Em todo caso: “A mulher não é
nunca senão o símbolo de sua linhagem... a filiação matrilinear é senão do pai
ou do irmão da mulher, que se estende até a aldeia do irmão”. Ela é apenas a
mediadora do direito, não a detentora (BEAUVOIR, 1980. p.92).
A escrita de autoria feminina é uma forma de
resistir à tradição literária feita pelos homens, pois as mulheres sempre foram
excluídas do cânone literário, por isso até hoje por meio da escrita, as
mulheres buscam retificar o caminho percorrido pela literatura masculina, no
sentido de desconstruir o preconceito formado durante a história em torno da
literatura feita por mulheres, já que “a imagem da mulher refletida no texto
torna possível à leitura especular; dessa maneira, a [escrita] feminina
torna-se uma espécie de autobiografia que se confunde com a escrita da mulher”.
(ZINANI, 2006. p32).
Essa expectativa vai possibilitar o exercício da
hermenêutica do texto que pode originar uma nova maneira de ler, desconstruindo
os procedimentos da crítica masculina e instaurando referentes que induzam os
leitores (homens e/ou mulheres) a questionar a própria modalidade de leitura e
de ideologia inscrita no texto. As experiências prévias e as expectativas
influenciam, tanto o processo de produção como o de recepção de textos, visto
que esses processos são estruturados por ideologias. [...] ideologias, valores
culturais e sistemas de crenças estão ligados ao poder, e uma forma de poder é
tanto a competência em definir a realidade social como a de impor a visão de
mundo. Esses aspectos estão inscritos na linguagem, pois as formas de nomear e
representar ilustra como a ideologia funciona, tanto na formação da identidade como nos
relacionamentos de gênero. (ZINANI, 2006. p33).
A linguagem
é um suporte que pode oferecer estratégias por parte do emissor no sentido de
demonstrar poder, crenças, ideologias, medos, anseios e insatisfação,
instigando o receptor a repensar suas práticas sobre determinado assunto e é
exatamente o que acontece com a escrita feminina, pois através desta, as
mulheres denunciaram e denunciam até hoje seu desejo de serem respeitadas como
seres capazes de pensar e realizar tanto quanto os homens, sendo assim:
Grande parte da teoria e da literatura feminista
supõe, todavia, a existência de um fazedor por trás da obra [...] Sem um agente
não pode haver ação e, portanto, potencial para iniciar qualquer transformação
das relações de dominação no seio da sociedade. (BUTLER, 2008, p.49).
A escrita feminina é um universo complexo, pois
essa questão de gênero desde muito tempo tem sido motivo de discussão, para (BEAUVOIR,
1980) o sexo é totalmente diferente de gênero, para ela toda pessoa nasce
sexuada e isso não pode ser mudado, mas o gênero sim, pois este é adquirido
culturalmente, sendo assim é impossível pensar na literatura de autoria
feminina desvinculada das questões sociais que abarcam a história das mulheres,
sendo esta um produto de uma mulher inserida num contexto político e social.
É inevitável
pensar a questão de gênero sem considerar que a história das mulheres, até
pouco tempo, atrás, foi escrita por homens, que detinham o destino delas nas
mãos. A nova história, a partir de instrumental metodológico e de práticas
historiográficas renovadas, ocupando-se, também, com questões genéricas procura demonstrar que as mulheres constituem uma
categoria fixa, exercendo papéis sociais diferentes (ZINANI, 2006. p. 92).
Como
se pode notar as mulheres vieram conquistando seu espaço no que tange à
literatura, como escritoras. Desde então tudo vem mudando, as mulheres
conquistaram muitas coisas em várias áreas do conhecimento, se firmando como
categoria fixa, e cada vez mais conquistando direitos, pois o que diferenciam
os seres humanos não é o sexo, mas sua capacidade intelectual. O que de acordo
com (ZINANI,
2006. p.24) “a análise da situação cultural da mulher é relevante no sentido de
verificar como ela vê o outro, como é vista pelo grupo dominante,
consequentemente, por si mesma”, pois:
Desde fins do século XIX e principalmente no século
XX, a principal transformação por que passou a literatura de autoria feminina é
a conscientização da escritora quanto a sua liberdade e autonomia e a
possibilidade de trabalhar e criar sua independência financeira - através,
basicamente, do trabalho jornalístico, diplomático (na América Hispânica,
principalmente na Argentina e México) e o professorado. Ocorreu assim uma
paulatina mudança da condição "feminina" para a condição
"feminista". Desde a década de 1970, a consciência do corpo e o
questionamento da existência, com a maciça entrada das escritoras na
Universidade, pelo menos desde a década de 1950, tornaram suas vozes mais
intensas. As escritoras passaram a expressar suas realidades psicológicas,
interiorizadas, filosóficas, introvertidas e superaram o estágio em que
repetiam o estilo dos homens, no século XIX. (LOBO, 1996, sp).
O percurso da trajetória de autoria feminina no
romance inglês é descrito por (SHOWALTER, 1985 apud ZOLIN 2005), dando conhecer
suas marcas, suas peculiaridades, em cada época especifica, com o objetivo de
investigar as maneiras pelas quais a autoconsciência da mulher traduziu-se na
literatura por ela produzida num tempo e espaço determinados e como ela se
desenvolveu.
Ela apresenta três etapas apontadas no percurso
literário que compreende as obras de autoria feminina entre 1840 até por volta
de 1960, a primeira chamada de feminine (feminina),
que é caracterizada pela a imitação dos padrões vigentes e internalização de
valores falocêntricos, isto é presa ao patriarcalismo; A segunda é uma fase de
ruptura denominada como feminist (feminista), em que há um protesto contra os
valores e padrões vigentes em defesa dos direitos da minoria, mas ainda não é totalmente
desligada do patriarcalismo, podendo ser considerada como uma fase de
transição; a terceira e última fase é a female
(fêmea ou mulher), esta fase é a de autodescoberta das mulheres, da busca
da identidade própria, ela é totalmente livre dos modelos patriarcais.
A partir
dessa divisão feita por Showalter começam aparecer romances de autoria fermina,
em que se pode perceber uma nova representação da imagem da mulher, livre das
amarras das tendências androcêntricas, no entanto é importante observar que
essas fases não são totalmente rígidas, pois apresentam uma certa
flexibilidade, podendo haver lampejos de todas elas numa mesma obra, ou seja, não há uma obra
totalmente pura no que diz respeito a
essas fases, o que vai classificar uma
determinada obra dentro de uma dessas categorias é a predominância de uma delas.
Para (ZOLIN, 2005), as
circunstâncias socioeconômicas são fatores determinantes na produção literária
feminina, por isso muitos críticos e críticas feministas franceses americanos,
principalmente, desde a década de 1970, debateram sobre o espaço delegado à
mulher na sociedade e suas consequências e reflexos na literatura, tentando
quebrar o pensamento tradicional de que a mulher tinha que estar em segundo
plano, em relação ao lugar ocupado pelo homem, marcada à submissão.
Esses discursos não só interferiram no
cotidiano feminino, mas também acabaram por fundamentarem os cânones críticos e
teóricos tradicionais e masculinos que regem o saber sobre literatura. Seguem
então alguns termos que serviram e servem de paradigma para a desconstrução da
oposição homem/mulher no âmbito da literatura:
·
Feminismo: termo
empregado em dois sentidos distintos, a maior parte das às vezes como oposição
ao masculino e faz referência às convenções sociais, mas também pode
simplesmente referir-se ao sexo feminino, no sentido puramente biológico, sem
nenhuma outra conotação;
·
Feminista :termo
entendido como o movimento que preconiza a ampliação dos direitos civis e
políticos da mulher, não somente em termos legais, mas também em termos de
práticas sociais;
·
Gênero:
trata-se das diferenças sexuais e culturais, levando em conta os atributos
culturais referentes a cada um dos sexos e a dimensão biológica dos eres
humanos;
·
Logocentrismo:
designa o pensamento canônico, se empenhando em demonstrar e desqualificar a
mistificação implícita no discurso ocidental ou europeu;
·
Falocentrismo:
termo utilizado por algumas escritoras e críticas francesas a para questionar a
lógica predominante no pensamento ocidental, em como a predominância da ordem
masculina;
·
Patriarcalismo:
termo que designa uma forma de organização familiar centrado na figura do
chefe, advinda dos povos antigos, esse chefe era chamado patriarca, cuja
autoridade era preponderante e incontestável;
·
Desconstrução: palavra utilizada pelos
teóricos da literatura em uma espécie de crítica das oposições hierárquicas que
estruturam o pensamento ocidental, tais como: modelo x imitação, dominado x
dominador, forte x fraco, presença x ausência, corpo x mente, homem x mulher,
apoia-se na convicção de que oposições assim não são de natureza biológica, mas
de construções ideológicas e que, portanto podem ser desconstruídas;
·
Alteridade:
constitui-se na qualidade que é do outro, qualidade
daquilo que é diferente, considerando que todo o homem social interage e é interdependemente
do outro, sendo asim a análise das obras literárias ecscrita por mulheres
visa
tornar conhecida a alteridade do discurso feminino, de acordo com princípio da
diferença , um discurso outro em relação ao mesmo’ ;
·
Mulher-sujeito e mulher-objeto: o primeiro termo se
refere á mulher marcada pela insubordinação aos referidos paradigmas
patriarcais, por seu poder de decisão, dominação e imposição enquanto o segundo
termo é utilizado para designar a mulher submissa, resignada e sem voz ativa,
uma vez que no caso da a mulher sujeito lhe é “ latente o desejo e a
necessidade de independência, de liberdade, o que leva a ruptura do espaço, a
partir da construção de um universo que permita o seu crescimento, a sua
satisfação e não sua submissão ( SOUSA,2012,p.88) e no caso da mulher –objeto
está , segundo Carvalho(2012) inserida num contexto patriarcal, caracterizado
por ambientes projetados pela arquitetura masculina excluídas do processo de
criação cultural estando sujeita à autoridade e autoria masculina.
Ainda de acordo com (ZOLIN,
2005), a partir de meados anos de 80 no Brasil, começou a se desenvolver estudos
sobre literatura e mulher. As linhas de pesquisa desenvolvidas nessa ocasião
derivam da linha de pesquisa anglo-americana -Eliane Showalter- e francesa- Hélène
Cixous e Julia Kristeva- intitulada Mulher
e Literatura - perspectivas
teórico-crítica; Representações do
feminino no texto literário e Literatura
feminismo, ambos com enfoque ,sócio-hstórico, literatura e o feminino ,enfoque
psicanalítico, e Literatura e mulher ,enfoque
estético-formal. Com o passar do tempo essas linhas de estudo foram se
modificando e assumindo novas configurações: Teoria e crítica feminista:
vertentes; A questão do Cânone e Gender - estudo de gênero, se configurando
como estão no momento atual: (Resgate, Teoria e críticas, Interdisciplinaridade
e Representação) e identidade- acréscimo meu. No Brasil bem como no exterior, a
literatura de autoria feminina, até pouco tempo atrás não aparecia no cânone
tradicional até que:
Raquel de Queiroz e Cecília
Meireles, ao serem reconhecidas nacionalmente, abrem as portas das editoras a
outras escritoras, mas é Clarice Lispector quem abre uma tradição para a
literatura da mulher no Brasil, gerando um sistema de influência que se fará
reconhecida na geração seguinte [...]. Trata-se de escritoras, que tendo em vista
a mudança de mentalidade descortinada pelo feminismo em relação à condição
social da mulher lançam-se no mundo da ficção, até então genuinamente masculino
(VIANA, 1995, p.172 apud ZOLIN, 2005, p.277).
O romance
Úrsula (1859) da escritora maranhense
Maria Firmina dos Reis, é considerado por muitos estudiosos como o marco
inicial da narrativa de autoria feminina, se enquadrando na fase chamada de feminina da literatura escrita por
mulheres, apresenta uma linha romântica onde a donzela é disputada pelo protagonista
herói e pelo antagonista da trama, no final a personagem principal morre, o que
é típico do final das histórias românticas. A obra ratifica os valores
androcêntricos, pois a mulher é representada como um ser frágil e indefeso,
internalizando ainda os valores vigentes naquele contexto social, além da Maria
Firmina dos Reis estão inseridas nesse mesmo contexto de produção literária de
imitação fundamentada no patriarcalismo as escritoras Júlia Lopes de Almeida e
Carolina Nabuco. É válido lembrar que a obra de Maria Firmina dos Reis é que é
presa aos valores patriarcais e não a autora como pessoas, já que Maria Firmina
dos Reis transgrediu, pois seu romance foi:
Um dos primeiros romances
brasileiros de cunho abolicionista, o que denota seu caráter transgressor, pois
contrariava as normas da sociedade patriarcal e eurocêntrica dominante no
Brasil do século XIX, uma vez que a mulher era vista tanto pela sociedade
quanto pela ciência desse período como um ser não pensante, pela fragilidade
física e mental a sua ocupação deveria se voltar para os problemas do âmbito
doméstico. A primeira transgressão é, por tanto, escrever e publicar
ingressando no espaço público [...] A autora maranhense mesmo usando uma
identidade genérica, não esconde a sua condição de mulher, tendo em vista que
muitas escritoras, época, também, utilizavam nomes masculinos (CARVALHO, 2012.p.72).
No Brasil
a fase de ruptura denominada de feminista
é marcada pela obra Perto do Coração
Selvagem (1943) de Clarice Lispector, esta obra questiona a relação de
gênero, quebrando paradigma a partir da forma, pois se diferencia dos romances
tradicionais, inovando no modelo de narrativas, se alternando em primeira e
terceira pessoa, apresentando bastante complexidade e introspecção, a
protagonista Joana é uma personagem inacabada está sempre em busca de si mesmo,
ora tenta romper com a tradição ora volta a aceitar os valores androcêntricos
que lhe são impostos:
Lídia teve um movimento de
revolta: era tocada bem na ferida, friamente.
_Sim. Toda mulher... _ Assentiu.
_Isso vem contra mim. Pois eu não
pensava em me casar. O mais engraçado é que ainda tenho a certeza de que não
casei [...] O casamento é o fim, depois de me casar nada mais poderá me
acontecer [...] E ser uma mulher casada, quer dizer, uma pessoa com o destino
traçado. Daí em diante é só esperar pela morte (LISPECTOR, 1998, p.149).
A
terceira fase chamada de fêmea, tida
como marco inicial A República dos Sonhos
(1984) de Nélida Piñon, instigando discussões sobre os valores patriarcais,
a autora é considerada vanguardista por sua linguagem inovadora e hermética,
uma linguagem nova sendo que “em todas as suas obras, imprimiu, seu estilo
peculiar, sua sintaxe desafiadora e uma apurada visão do universo feminino”
(ARAGÃO, 2012.p.20). A República dos
Sonhos é uma narrativa que foge dos padrões romanescos, seu foco narrativo
apresenta pontos de vistas diferenciados e alternados.
Diante
disso pede-se afirmar que foram muitas as contribuições das vozes femininas no
Brasil na construção de identidade feminina o que refletiu numa literatura
autenticamente feminina, construída por meio de vozes que estiveram tanto tempo
silenciadas: “A mulher ao escrever, transfere as inquietações da alma feminina,
os dramas e os desejos; não através de ideais visionários, mas pela
identificação com seu papel de escritora e leitora” (SOUSA, 2012, p.129), isso
acontece por meio da alteridade, considerando a história e a sociedade em que
essa mulher encontra-se inserida e essa escrita feminina vai mudando à medida
que a mulher muda em busca de sua identidade própria.
3 O
INÍCIO DA RUPTURA DO PENSAMENTO ANDROCÊNTRICO NA LIETRATURA BRASILEIRA
3.1
Clarice Lispector: vanguarda e introspecção
Clarice Lispector (1920-1977) Nasceu na
Ucrânia e veio para o Brasil, ainda recém-nascida, fixando-se com sua família
no Recife. Aficionada a monteiro Lobato, ela escreveu, ainda menina, vários
contos. Aos doze anos mudou-se para o Rio de Janeiro, onde foi estudar no
Colégio Sílvio Leite. Nessa época entrou em contato com as obras de vários
autores que admiraria a vida toda: Júlio Dinis, José de Alencar, Eça de
Queiroz, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Mário de Andrade entre outros.
Explorou como ninguém a prosa poética, sua obra está dividida em romance: Perto do Coração Selvagem (1944), O Lustre (1946), a Cidade Sitiada (1949), A
Maçã no Escuro (1961), A Paixão
Segundo G.H (1964), Uma Aprendizagem
ou livros dos Prazeres (1969), Água
Viva (1973), A Hora da Estrela (1977);
contos: Alguns Contos (1952), Laços de Família (1960), A Legião Estrangeira (1964), Felicidade Clandestina (1971), A Imitação da Rosa (1973); A Via-crúcis do Corpo (1974), Onde estivestes de Noite?(1974);
crônicas: Visão do Esplendor (1975), Para não Esquecer (1975), Um Sopro de Vida (1978), A Descoberta do Mundo (1984); livros
infantis: O Mistério do Coelho Pensante (1979), A Mulher que Matou os Peixes (1969), A Vida Íntima de Laura (1974) e Quase Verdade (1978).
A romancista e cronista
Clarice Lispector pertence à terceira fase ou terceiro tempo do Modernismo
brasileiro, a geração de 45, como eram chamados os escritores e escritora dessa
fase, renovou a narrativa, os prosadores produziriam nas décadas de 50 e 60 uma
antologia de contos psicológicos, regionais, surrealistas, documentais,
impressionista e fantástico e foi nesse âmbito da produção literária que
Clarice Lispector surgiu para romper barreiras antes inabaladas, seu esforço
constante de penetrar nas profundezas da consciência humana é a característica
de sua literatura.
Sobre a questão de gênero
Clarice Lispector ilustra a segunda etapa da trajetória da literatura escrita
por mulheres a chamada fase feminina
que questiona o modelo patriarcal prevalecente na literatura, a obra de Clarice
rompe barreiras colocando em questão as relações de gênero. Segundo (XAVIER,
2002), Clarice pode ser considerada como um divisor de águas na história da
narrativa brasileira escrita por mulheres, abrindo caminho pra uma nova forma
de narrar, sendo vanguardista, inovando não só apenas nos temas como também nos
aspectos estruturais do romance, abrindo caminho, no Brasil, para uma nova
forma de narrar, dentro de um espaço até então masculinizado, quebrando a voz
machista e autoritária do romance do seu tempo, a partir da obra Perto do Coração
Selvagem.
Ainda conforme (XAVIER,
2002), Clarice Lispector desequilibra o paradigma romanesco tradicional,
questionando a filosofia do cogito
cartesiano que está relacionada com a quebra da tradição, dos limites
ordenadores impostos à forma e de seu comprometimento com a pós- modernidade e
com o feminismo não sectário, mas adepta às tendências vanguardistas, a autora
cria personagens descentradas, que não se definem claramente, nem exterior nem
interiormente. Sua obra confere um tratamento novo não apenas a determinados
temas, mas aspectos estruturais do romance, sobretudo ao foco narrativo,
abrindo caminho, no Brasil, para um novo modelo de narrativa, dentro de um
aspecto racionalmente fechado à mulher, sendo vanguardista em muitos aspectos,
desconstruindo a voz autoritária do romance tradicional, ao mesmo tempo em que
abandona as convenções narrativas para adotar a complexidade do
multiperspectivismo, por isso “Clarice sempre teve a fama de escrever difícil.
Seus contos e romances deixam muita gente atrapalhada, se perguntando: mas é um
conto mesmo? É um romance mesmo? Perturbadores, seus livros falaram, sobretudo
de sentimentos”. (STRAUSZ, 2003, p.04).
O Romance psicológico
segundo (COSTA, 2008) surgiu com os avanços da ciência que estuda a mente
humana, de modo a revolucionar a composição dos personagens e tempo ficcional,
esse fator fez com que os escritores criassem um novo tipo de romance, que toma
como base o interior da alma do ser humano, dentro desse contexto surgiu
Clarice Lispector, a escritora é, de acordo com (FERNANDES e NOVAIS, 2004), considerada
uma autora intimista, por abordar em suas obras a vivência interior, o que e
passa no íntimo do narrador ou dos personagens, nesse caso o que é mais
importante são as impressões do ‘eu’ e
não os fatos que as desencadeiam, fatos esse que são geralmente coisas banais,
situações corriqueiras do dia a dia dos grandes centros urbanos, onde seus
personagens principais são geralmente mulheres, em que o narrador expõe as
inquietações do mundo interior dessas personagens, a originalidade da obra de
Clarice não está precisamente nos temas, mas na linguagem que esses temas
apresentam com metáforas e imagens inesperadas “eu via na sorridente fotografia
mal-assombrada de um rosto cuja palavra é um silêncio inexpressivo, todos os
retratos de pessoas são um retrato mona Lisa” (LISPECTOR, 1998, p.27), todas as
pessoas são enigmáticas como o sorriso da famosa pintura de Da Vinci.
Consoante (CADORE, 1999), Clarice Lispector juntamente com Guimarães Rosa
revolucionou o modo de narrar na ficção brasileira. Segundo (LOBO, 1996), Clarice assume o
discurso tipicamente feminino para desconstruí-lo de dentro, enquanto prosa
poética, ao recriar a expressão do eu feminino, que se insubordina ao mesmo
tempo em que se autoquestiona, principalmente nos seus romances, A maçã no escuro (1961), A paixão segundo G.H. (1964), Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969) e A hora da estrela (1977). O tom
original de Lispector está na sua franqueza de expressão, numa perspectiva
existencialista e psicológica, na busca da identidade da mulher dentro do lar
burguês, buscando significados não visíveis no cotidiano
o que a leva à descoberta do significado eu feminino, vislumbrando assim,
problemática da mulher que não se esgota na aparência do mundo. A sutileza e a
ironia são próprias do discurso modernista, Lispector, inova na literatura
brasileira com um vocabulário extraordinário ao mesmo tempo em que valoriza a
personagem feminina e a escrita da mulher num nível universal único na
literatura brasileira, Clarice tinha mesmo dom para a literatura, fazendo o
leitor mergulhar nesse mundo introspectivo que ela descobriu:
Eu tive desde a infância várias vocações que me
chamavam ardentemente. Uma das vocações era escrever. E não sei por quê, foi
esta que eu segui. Talvez porque para as outras vocações eu precisaria de um
longo aprendizado, enquanto que para escrever o aprendizado é a própria vida se
vivendo em nós e ao redor de nós. É que não sei estudar. E, para escrever, o
único estudo é mesmo escrever. (LISPECTOR, 2003).
De acordo com (FERNANDES e NOVAIS,
2004), uma das características da escrita de Clarice é atingir as
regiões mais profunda da mente das personagens par sondar os mecanismos mais
complexos do mundo psicológico, sua escrita objetiva a não predominância de
enredos lineares, do tempo psicológico, da importância secundária do espaço
exterior bem como as características físicas das personagens, no entanto essas
personagens se descobre em um mundo absurdo diante de um fato inusitado que
provoca um desiquilíbrio interior capaz de mudar a vida da personagem para
sempre, sendo que:
Personagens e narradores desenvolvem,
assim, um mesmo tipo de prática: aventuram-se através da imaginação, buscando
romper com a barreira da palavra, com o rotineiro mundo lógico, voltado
unilateralmente para os fatos observáveis. É necessário recuperar o “selvagem
coração da vida”, perdido quando o homem perdeu historicamente sua liberdade
instintiva- um mundo pré-lógico e pleno de vitalidade (CAMPEDELLI e JR, 1988, p.132).
O romance de Clarice
prioriza a individualização, sendo precursor na desrealização do indivíduo do
real como tentativa de se chegar ao culto sob as aparências.
Segundo (FONSECA, 2007), obra de Clarice Lispector
abriga uma complexa cosmovisão de mundo e do homem, sua literatura é um
mergulho profundo no mundo introspectivo dos mistérios do ser, suas narrativas
parecem buscar sempre a origem ou dos princípios das coisas, se deparando com a
complexa condição humana que está para além do racional:
Sua literatura é um ambíguo espelho da mente,
registrado através do fluxo da consciência, que indefine as fronteiras entre a
voz do narrador e das personagens. Rompe-se, assim a narrativa referencial,
ligada a fatos e acontecimentos. Em lugar dela, emerge uma narrativa
interiorizada, centrada num momento de vivência interior da personagem (ou do
narrador). É possível, até mesmo, que um acontecimento exterior provoque o
desencadear do fluxo da consciência: um acontecimento pode liberar ideias que
vão até o inconsciente da personagem. (CAMPEDELLI e ABDALA 1988, p.132).
Dessa forma, a partir de um estado de desejo, as
personagens dessa autora mergulham num processo de autodescoberta, percorrendo
entre o estado de satisfação e a frustração, numa busca constante para se
encontrarem em si mesmas, reafirmando a problemática da felicidade abordada por
Clarice, que pode estar em um momento de entendimento do seu próprio eu.
Este processo de autodescoberta ocorre em Felicidade Clandestina (1971), cujo
enredo gira em torno de um conflito, envolvendo o empréstimo do livro Reinações de Narizinho de Monteiro
Lobato onde a personagem dona do livro sente prazer em maltratar outra
personagem que o deseja emprestado para lê-lo, a felicidade da dona do livro é
torturar a colega, pois a primeira é filha de dono de livraria e
consequentemente poderia ler quantos livros ela quisesse o que ela não faz, mas
se aproveita da situação para humilhar a colega de classe, fazendo esta ir
muitas vezes a sua casa buscar o livro em questão, porém todas as vezes que a
colega chegava lá a dona do livro dava as mais variadas desculpas, até que um
dia a mãe da dona do livro percebeu tudo e emprestou o livro para a menina pelo
tempo que ela quisesse.
Os textos de Clarice Lispector carregam a dicotomia
da escrita de autoria feminina, conservadores, mas vez por outra transgredem,
emancipação está nas entrelinhas do discurso e não de forma clara e objetiva de
maneira escancarada, revelando uma sociedade em que a mulher olha para dentro
de si própria, refletindo no que precisa ser modificado.
Sendo assim, poucas mulheres se aventuravam na literatura,
mas conforme (XAVIER, 2002, p. 159 e 160) Clarice pode se considerada como um
divisor de águas na história da narrativa brasileira escrita por mulheres,
abrindo caminho pra uma nova forma de narrar, sedo vanguardista, inovando não
só apenas nos temas como também nos aspectos estruturais do romance, abrindo
caminho, no Brasil, para uma nova forma de narrar, dentro de um espaço até
então masculinizado, quebrando a voz machista e autoritária do romance do seu
tempo, a partir da obra Perto do Coração
Selvagem (1944). Os contos de Laços
de Família (1960) ironizam o modelo patriarcal vigente, onde a mulher jaz
no espaço privado, por isso questionam e procuram encontrar soluções para os
impasses criados, como se pode vislumbrar no conto Amor, onde a dona de casa
Ana não se sente feliz e tenta fugir da sua realidade, usando a fuga da
realidade como válvula de escape para fugir de si mesma e também para passar o
tempo.
As narrativas de Clarice projetam através das
personagens ou do narrador, inquietações e anseios, sempre em busca do
mistério, da essência, por meio das indagações sobre a vida e sobre si mesmas,
como a própria afirma “Preste atenção e é um favor: estou convidando você para
mudar-se para reino novo” (LISPECTOR in XAVIER, 2002, p.157). Reino novo este
que as personagens cansadas do cotidiano banal, mergulham em mundo subjetivo,
refletindo sobre a existência humana, buscando sua identidade e esta busca pela identidade sempre perpassa o outro,
seja por meio de uma situação, de um animal, de
uma pessoa ou de um animal, caso da personagem Ana do conto Amor, esses questionamentos veio através
de uma situação e uma pessoa no caso um
de cego que mastiga chicletes na parada de bondes.
4
LAÇOS DE FAMÍLIA: UMA OBRA DE CARÁTER QUESTIONADOR ACERCA DA IMANÊNCIA DA
MULHER DENTRO DA FAMÍLIA BURGUESA
4.1
Laços de família: convenções e aprisionamento
A obra Laços de Família de Clarice Lispector é composta por treze contos: Devaneio e embriaguez de uma rapariga, Amor,
Uma galinha, a imitação da rosa, Feliz aniversário, A menor mulher do mundo, O
jantar, Preciosidade, Os laços de família, Começos de uma fortuna, Mistério em
São Cristóvão, O crime do professor de matemática e O búfalo, que segundo
(CAMPEDELLI e ABDALA, 1988) é uma coletânea publicada em 1960, reunindo sete
contos inéditos e seis outros que foram anteriormente publicados sob o título Alguns Contos (1952), entre os quais Amor, conto objeto de estudo desta
análise, a autora procura registrar, nesses contos, o processo de
aprisionamento dos indivíduos por meio dos ‘laços de família’ de sua ‘prisão
doméstica’, sob pena de que essas formas foram convencionadas e estereotipadas
e foram ritualmente repetidas de geração em geração, como uma forma de
preconceito, sem a consciência crítica de sua validade.
Nos contos: Devaneio e embriagues de uma rapariga, Amor, A imitação da Rosa, Os
laços de família, Feliz aniversário, Preciosidade e Mistério em São Cristóvão,
o enredo gira em torno da condição feminina no contexto familiar enquanto que
em Uma galinha, A menor mulher do mundo,
Começos de uma fortuna, O Búfalo e O
crime do professor de matemática, mesmo o enredo sendo preso ao universo
familiar, há passagens fora do contexto doméstico propriamente dito, como por
exemplo, em A menor mulher do Mundo,
onde quase todo enredo ocorre em uma
floresta, quando um explorador francês se depara com uma pequena mulher que ele
passa a chamar de Flor. A maioria das personagens centrais dos contos de
Clarice são mulheres (Devaneio,
embriagues de uma rapariga, Amor, A imitação da Rosa, Os laços de família,
Feliz aniversário, Preciosidade, A menor mulher do mundo, Começos de uma
fortuna, O Búfalo) e que por algum motivo simplório e corriqueiro quebra
sua rotina dentro do contexto repetitivo e monótono do lar ou fora dele, seja
vendo um cego mascar chicletes (Amor),
numa cusparada no chão (Feliz
aniversário), nos passos de um desconhecido (Preciosidade), no solavanco de um táxi (Os laços de família), non grito de uma garota assustada (Mistério em São Cristóvão) ou no olhar de negro búfalo (O Búfalo), no entanto, tudo no final retorna à tranquilidade
inicial do seio familiar das personagens, mas não igual a antes, pelo menos
subjetivamente, ao passo que:
A família, motivo tão explorado em nossa literatura
desde o Modernismo, recebe aqui um tratamento ironicamente desconstrutor.
Presente em quase todos os contos da coletânea, este tema é um elemento
estruturante da narrativa, uma vez que são esses “laços”, que protegem e sufocam
os desencadeadores dos dramas vividos. (XAVIER, 2008, p. 51).
Os contos de Laços
de Família, segundo (FILHO,2013), possuem personagens que mesmo mascaradas
pela rotina do dia a dia, através de uma ‘epifania’, iluminam sua vida, essa
epifania as levam a uma reflexão, fazendo com que estas se autodescubram ao
ponto de chegar a desalienação, este processo epifânico pode ocorrer por meio
de um evento ou um incidente comum do cotidiano, como no caso do conto Amor em que Ana começa a questionar a
sua maneira de viver até então, ao ver um cego que mascava chicletes em uma
parada de bonde. A rotina é o carro chefe do enredo desses contos, pois esta é
o principal tema deles, por isso seus personagens são na grande maioria
mulheres, uma vez que não há mais pessoa vítima da rotina do que as mulheres.
Geralmente suas personagens são fracas, frustradas e desajustadas, que se
escondem por trás de uma casca, casca esta que as envolve em náuseas e
angústias, quase sempre estas personagens tem um momento de lucidez, que as
desperta da rotina, mas sempre voltam para essa mesma rotina para se refugiarem
de suas fragilidades, inseguranças frustações, são desapropriadas de
autoafirmação, se movendo de acordo com as convenções e imposições sociais e
familiares. No conto Amor, objeto de
análise desse estudo a personagem Ana se encaixa perfeitamente nesse perfil,
esmagada pela rotina, pertence a uma família urbano-burguesa, cujos valores
sociais e familiares estão em nítida decadência, pois esse é o estereótipo das
personagens dessa coletânea que ironizam os ‘laços de família’:
Num
conjunto de treze contos, Clarice Lispector nos apresenta o retrato de uma época:
a nossa [...]. O livro enfoca e fotografa o desmoronamento de todo um complexo
de instituições, fórmulas e convenções sociais [...]. O homem que é levado, que
não quer tomar conhecimento de sua alienação, e, se por acaso isso acontece,
recusa-se a tomar qualquer providência. O homem mascarado, insensível, forjando
atitudes, ideias e sentimentos, a título tão somente de verniz. [...] A mulher
se cansa, se enfara, se empanturra dessa vida de momentos iguais e insípidos. E
que pode o indivíduo fazer ante o mundo? Ou ele se enquadra, se amolda e se
torna a mãe desvelada, a esposa perfeita [...]. Após o enquadramento só vem a
rotina que, se quebrada, traz angústia; se mantida, traz fastio[...] . Os laços
de família tão tênues, tão frágeis e tão corroídos que atestam a
desestruturação de uma sociedade doente. Os homens veem a ‘opacidade do mundo’,
o vazio e a gratuidade da existência, a falta de justificativa da vida diária,
a banalidade e estupidez de seus dias vividos na base de ilusões e
convencionalismos, mas, na certeza da angústia como decorrência da
conscientização, preferem ficar ‘cansados do dia, felizes em não discordar, tão
dispostos a não ver defeitos’. (FILHO, 2013, s.p).
As personagens retratadas aqui preferem o comodismo
de uma vida enfadonha a se despertarem para um novo modo de viver, optando por
levarem uma vida “sossegada” ao invés de correrem riscos rumo ao desconhecido,
valorizam a rotina por medo de perder seus protetores e frágeis laços de família.
De acordo
Com (XAVIER, 2002) a obra de Clarice trás nas suas entrelinhas muitos
questionamentos sobre a condição da mulher na sociedade patriarcal, rompendo
com esse estado de “coisa”, pondo em questão as relações de gênero:
Os contos de
Laços de Família (1960), - O próprio
título é muito significativo-, tornam visível a repressão sofrida pelas
mulheres nas cotidianas práticas sociais. O feminismo já havia desencadeado um
processo de conscientização e a narrativa de autoria feminina vai incorporar as
questões polêmicas contidas em O segundo sexo (1949) d Simone de Beauvoir.
Chamar essa etapa de feminista não significa dizer que ela é panfletária;
ninguém discute o valor estético da obra de Clarice e, no entanto, ela traz nas
entrelinhas uma pungente crítica aos valores patriarcais. (XAVIER, 2002, p.159)
Ainda em
concordância com (XAVIER, 2002) nos contos de Laços
de Família se torna muito visível à opressão vivida
pelas mulheres nas práticas cotidianas da sociedade daquela época, dessa forma
Clarice Lispector pode ser considerada um divisor de águas no que tange à
trajetória da narrativa brasileira de autoria feminina por colocar em discussão
as questões de gênero, subvertendo ao paradigma romanesco tradicional criando
personagens descentradas que não se definem claramente, nem exterior nem
interiormente. Nos contos de Laços de
Família, há um questionamento de gêneros, no entanto não há soluções para
os impasses que são encontrados, mesmo assim Clarice Lispector promove uma
revolução no romance brasileiro desconstruindo os desfechos canônicos das
narrativas tradicionais, legitimando novas perspectiva a respeito das condições
femininas, possibilitando o surgimento de novas escritoras que se ocuparam com
as relações de gêneros.
4.2 Ana:
satisfação em ser apenas rainha do lar?
O
conto Amor objeto desse estudo,
pertence à segunda fase da tradição literária, essa fase protesta contra os
valores falocêntricos, mas não se desvincula totalmente ainda dos modelos patriarcais,
com o seguinte enredo: A personagem central do conto é Ana, dona de casa, com
marido e filhos. Um dia num carro elétrico, quando voltava das compras, Ana vê
um cego mastigar chicletes e fica confusa. Partem-se os ovos que ela traz
consigo, o encontro é tão intenso que Ana se esquece de descer na sua parada, ela
caminha meio confusa e acaba no Jardim Botânico, onde fica algum tempo em um
estado de reflexão e revitalização. Assim que se lembra dos filhos, volta
apressada para casa, ainda perturbada com que lhe acontecera, mas decidida a
continuar com a mesmice de sua vida simples e monótona. Pelo enredo percebe-se
que não há ainda a ruptura do pensamento androcêntirico, mas há pelo menos o
começo de uma reflexão apontando para um caminho de mudança, uma vez que apesar
de maior parte enredo do texto ocorrer fora do lar, a personagem não parece
estar contente com essa situação, tudo se desestabiliza de súbito, em lampejos
a respeito do cotidiano fazendo com que a personagem não seja jamais como ela era
como será percebido ao longo desse estudo, em que será analisado se houve ou
não desalienação por parte da personagem em questão, sendo que:
O ideal de
felicidade sempre se materializou na casa, numa choupana ou no castelo: encarna
a permanência e a separação. É entre seus muros que a família se constitui numa
célula isolada e afirma sua identidade para além das passagens de gerações; um
passado conservado sob forma de móveis e retratos de antepassados prefigura um
passado sem riscos. (BEAUVOIR, 1980, p.195)
A presente análise está centrada em uma
personagem (Ana), pois mesmo sendo fictícias, as personagens têm muito a ver
com a nossa realidade, ao ler o conto, com certeza muitas leitoras se
identificam com essa personagem seja porque de certa forma possuem vida
parecida ou porque conhece alguém que se encontra ou se encontrou na mesma
situação e também por que:
A seleção de
personagem é um processo que pressupõe a seleção de caracteres, a fim de
estabelecer um perfil das demais. Dessa forma, a personagem inserida no
universo diegético requer um grau de verossimilhança [...] o leitor, por sua
vez, toma conhecimento, ou se apropria dessas características, através das
diversas vozes, que cruzam a narrativa, seja a do narrador, a da própria personagem.
(MENDES, 2012, p.34).
De acordo com (BEAVOUIR, 1980), desde a origem
da família com a sociedade patriarcal, a mulher tem sido colocada em segundo
plano, talvez por ser considerada pelos homens como um sexo frágil e por ter
recebido a tarefa imposta pela natureza de gerar os filhos, por conta disso
criou-se certa descriminação contra a mulher, sendo esta considerada como um
ser incapaz e dessa forma foram-lhe subtraindo seu direito de sujeito agente na
sociedade, uma vez que:
Nenhum sujeito se coloca imediata e
espontaneamente como inessencial; não é o Outro que definindo-se como o Outro
define o Um; ele é posto como o Outro pelo Um definindo-se como Um. Mas para
que o Outro não se transforme no Um é preciso se sujeite a esse ponto de vista
alheio. [...] Mesmo quando os direitos lhe são abstratamente reconhecidos, um
longo hábito impede que encontrem nos costumes sua expressão concreta. O lugar
da mulher na sociedade é sempre eles [homens] que estabelecem. Em nenhuma época
ela [mulher] impôs sua própria lei. [...]. Voltada à procriação e as tarefas
secundárias, despojada de sua importância prática e de seu prestígio místico, a
mulher não passa desde então de uma serva (BEAVOUIR, 1980, p.12-100).
O conto Amor trata dessa
condição da mulher observada por Beauvoir, mas apresenta por meio da personagem
principal certo desconforto em relação a essa situação vivida pelas mulheres. A
narradora começa o conto já dizendo que Ana, a protagonista, está meio cansada
e sobe no bonde com um saco feito de tricô contendo as compras que ela fizera para
preparar o jantar, no intuito de valorizar os afazeres domésticos, Porem dá um
ar de insatisfação à personagem, quando diz que Ana , por caminhos tortos caiu
num destino de mulher, no caso, o casamento e consequentemente a vida
doméstica, fazendo perceber que isso era só o que as mulheres poderiam almejar
para sua vida naquela época, Ana demonstra isso “num suspiro de meia
insatisfação”:
Um pouco cansada, com as
compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o
volume, no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco
procurando conforto num suspiro de meia insatisfação. [...] Por caminhos
tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como
se tivesse o inventado. (LISPECTOR, 2009, p.19-20).
Realmente a protagonista caíra em um destino de mulher, vivendo
para cuidar do lar, dos filhos e do marido, agradando mais aos outros do que a
si mesma, pois Ana está condicionada a um esquema tradicional da família de
modelo patriarcal, uma vez que “a família constitui a sociedade primordial”
(ZINANI, 2006, p.85), ela nunca soubera se reconhecer como um individuo-mulher
naquela sociedade falocêntrica, sendo vítima de sua própria liberdade:
Os filhos de Ana eram
bons, uma coisa verdadeira e sumarenta [...] A cozinha era enfim espaçosa, o
fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos
poucos pagando [...] Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas
essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de
luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com
comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno
das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranquilamente, sua mão pequena e
forte, sua corrente de vida [...]
No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a
raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. [...]. O homem com
quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos
verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de
vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade
se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que
viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que
sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma
exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade
insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto.
Assim ela o quisera e o escolhera. (LISPECTOR, 2009, p.19-20).
Como se percebe há uma valorização do ambiente doméstico por meio
dos pensamentos da personagem, mas no momento em que Ana se depara com o cego,
no seu automatismo de mascar chicletes, ela desperta e começa a refletir sobre
o sentido de sua vida, sobre a vida automática que ela leva e sobre sua
cegueira diante disso, percebendo que ela também vive naquele automatismo,
sempre fazendo as mesmas coisas, no caso, a servidão da vida doméstica, pois
estava tão habituada à presença do mundo que a rodeava que deixou de prestar
atenção nele, e foi através desta cena em Ana viu o cego mascar chicles, que
ela começou a refletir sobre sua identidade como mulher, como sua vida era para
os outros, foi nesse momento de epifania, ou seja, nesse incidente, que a
personagem viu iluminar sua vida. Nesse instante Ana percebe o quanto sua vida
era insignificante e que a submissão era seu papel na sociedade então ela começa
a perceber que tudo era feito na sua vida de modo rotineiro e monótono, de modo
que um dia se arrastava atrás do outro, sem nada de interessante que pudesse quebrar sua
angustiante rotina, esse acontecimento possibilitou, por meio de uma angústia
profunda, uma ruptura com o cotidiano da personagem pautado no pensamento
androcêntrico, mesmo que seja de caráter sentimental, introspectivo.
Ana respirou profundamente
e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher. O bonde se arrastava,
em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou
para o homem parado no ponto. A diferença entre ele e os outros é que ele
estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.
O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranquila
estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego
mascava chicles. Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos
viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o
cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na
escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o
parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como
se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de
uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada. (LISPECTOR,
2009, p.21-22).
A personagem Ana, também demonstra insatisfação com esse mundo
doméstico através de seu corpo, insatisfação com esse mundo marcado por
repetições, pois seu corpo demonstra fadiga, enquanto ela prepara a comida na
cozinha e também durante o jantar para os convidados. Além disso, quando Ana se
encontrara no Jardim Botânico, pensou na sua família e isso lhe causou muito
angústia e náuseas, pois depois do incidente do cego na parada de ônibus, Ana
passou a refletir se sua vida estava do jeito que ele realmente queria, porém
mesmo incomoda com a vida que levara até ali, mesmo assim ela resolve cumprir sua responsabilidade de
“ser social” que era somente cuidar dos filhos e do marido , mesmo estando
nesta situação de irrealidade que toda situação anterior lhe causara ela retoma sua situação de
realidade a de dona de casa e “ rainha do lar”.
Quando Ana pensou que
havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como
se ela estivesse grávida e abandonada [...] Mas quando se lembrou das crianças,
diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor [...] Enquanto
não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre [...] A sala era
grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam,
a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia
que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino
que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu,
que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula.
Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado —
amava com nojo. [...]. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se
soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a
quem queria acima de tudo. (LISPECTOR, 2009, p.25-26).
Ao chegar ao lar, Ana observa os cômodos da casa, os móveis agora
parecem diferentes, pois Ana agora está diferente, tudo dentro de casa lhe é
estranho e desconhece aquele mundo, agora aquele ambiente é alheio a ela, é um
mundo estranho e confuso, ela se incomoda com presença de pequenos bichos na
cozinha, tais como besouros, mosquitos e formiguinhas, chegando a esmagar uma dessas
criaturinhas com o pé, numa tentativa de acabar com tudo que constituísse uma
ameaça para a paz e tranquilidade do seu ambiente “pequeno burguês” onde ela
vive que é o seu lar doce lar, no intuito de permanecer dentro dos padrões
estabelecidos por uma sociedade falocêntrica, no entanto isso será difícil de acontecer,
pois mesmo Ana não querendo externar sua insatisfação, tentando voltar a sua
tranquilidade cotidiana, é impossível, uma vez que agora ela vê descortinar
diante de si outras realidades fora da rota doméstica, mas prefere ficar calada
a se arriscar num mundo totalmente novo, desconhecido ainda que fosse de modo
abstrato:
Deixou-se cair numa
cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?[...] Estou
com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a
empregada a preparar o jantar. Mas a vida arrepiava-a, como um frio.
Ouvia.[...] Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror,
horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o
creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite
cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois
seios escorria o suor. A fé a quebrantava, calor do forno ardia nos seus olhos.
(LISPECTOR, 2009, p.27).
Ana, durante sua reflexão por causa do incidente do cego sente
medo, nojo e amor, esses sentimentos se misturam desencadeando nela uma
angústia profunda, lhe provocando náuseas, essas náuseas sejam talvez uma
maneira de externar toda sua insatisfação com sua vida, mas mesmo insatisfeita,
ela é romântica como a maioria das mulheres “dois namorados entrelaçavam os
dedos sorrindo... [...] Oh! Mas ela amava o cego! Pensou com os olhos molhados.
No entanto não era com esse sentimento que se iria a uma igreja” Lispector (2009,
p.23-27), Ana sente um amor que mistura nojo e piedade e porque não um amor
carnal? Isso faz com ela tenha certa reciprocidade com o cego, uma vez que a
vida do cego mistura tudo isso e sente medo por se sentir insegura em relação
ao que estar por vir sendo que:
O amor pode se entendido
como um fenômeno que, respeitando a autonomia dos seres, tende reforçar a
realidade individual, através do cuidado recíproco, em cada um procura o bem do
ouro como seu próprio. Assim pode- se afirmar que a existência do amor está
condicionada a sua reciprocidade, podendo ser considerado como união de
intentos, de interesses, de propósitos [...]. O medo é uma emoção associada à
perspectiva de um mal eminente que pode trazer grandes dores ou destruições.
(ZINANI, 2006, p.107-110).
A personagem principal sente amor pelo cego por se identificar com
a vida dele, com seu automatismo ao mascar chicletes, pois Ana vive na
escuridão de uma vida automática que ela levara até ali, mas que ainda não se
sente preparada para quebrar com esse paradigma da vida d a mulher pautada no
pensamento androcêntrico, uma que:
A libertação da mulher
envolve um percurso longo e árduo, pois é necessário desconstruir os conceitos
tradicionais, redesenhar os papéis de homens e mulheres e prepará-los para
assumir as novas tarefas com igualdade e respeito. (ZINANI, 2006, p.102).
As emoções são
próprias do ser humano, podendo também ser responsáveis por demonstrar
insatisfação com algo por parte do sujeito, uma vez que as emoções vêm do mais
íntimo do ser, elas são, portanto o espelho da alma do sujeito, no caso, de
Ana, mulher que precisa mais do que uma lar para cuidar para se sentir
realizada como sujeito agente, pois de acordo com (BEAUVOIR, 1980), a mulher
foi destinada tradicionalmente ao casamento, sendo que até hoje a maioria das
mulheres são casadas, ou foram ou ainda serão e sofrem se não são, no entanto o
casamento sempre se apresentou de maneira bem diferente para o homem e para a
mulher mesmo sendo o homem e a mulher necessários um para o outro, essa
necessidade nunca representou nenhuma reciprocidade, pois os homens se realizam
como esposos e pais enquanto que as mulheres são integradas como escravas ou
vassalas, uma vez que estas já veem de um grupo familiar dominado pelos pais e
irmãos e sempre a mulher foi dada em casamento aos homens por outros homens,
sendo as mulheres de certa forma forçadas pela sociedade prestarem serviço ao
seu esposo, de certa forma são obrigadas a contrair matrimônio, sendo que se
preferem ficarem solteiras, tornam-se socialmente ridículas. Dessa forma se
pode dizer que a mulher está votada à perpetuação da espécie e à manutenção do
lar, isto implica na sua imanência, o casamento além de escravizar a mulher a
um homem faz dela dona de um lar, nos lares burgueses as moças são
incapacitadas de ganhar a vida, podendo estas somente vegetar como um parasita
no lar paterno ou aceitar ser uma subalterna em algum lar estranho, o do marido,
sendo assim “o princípio do casamento é obsceno porque transforma em direitos e
deveres uma troca uma troca que basear-se num impulso espontâneo” (BAAUVOIR,
1980, p.191). A mulher pode ser feliz sim sendo casada, mas para isso é preciso
primeiro ela ter se encontrado em obras e atos, o homem se interessa pelo seu
interior porque ascende ato de universo e pode afirmar-se em projetos, enquanto
que a mulher está encerrada na comunidade conjugal vivendo sem poder transcender-se,
nesse reino que está mais para prisão o que significa dizer:
Legiões de mulheres não
têm por quinhão senão uma fadiga indefinidamente recomeçada no decorrer de um
combate que jamais comporta em vitória. Mesmo em casos mais privilegiados, essa
vitória nunca é definitiva. Há poucas tarefas que se apresentem, mais que as da
dona de casa, ao suplício de Sísifo; dia após dia, é preciso lavar os pratos,
espanar os móveis, consertar a roupa, que no dia seguinte já estão novamente
sujos, empoeirados, rasgadas. A dona de casa desgasta-se sem sair do lugar; não
faz nada, apenas perpetua o presente; não tem a impressão de conquistar um Bem
e sim de lutar indefinidamente contra o Mal. É uma luta que se renova todos os
dias (BEAUVOIR, 1980, p.199-200).
A mulher quando solteira
tem mais chances de se transcender como pessoa, mas depois de casada se vê
encerrada dentro de um lar, numa prisão sem muros, sem grandes chances de mudar
sua condição de subjugada, Ana, anda por uma rua comprida e com muros amarelos,
antes de chegar ao Jardim Botânico, onde por um momento se sente livre, é
preciso estar ela fora de casa para sentir tal sensação.
Era uma rua comprida, com
muros altos, amarelos. [...]. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde
localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões
do Jardim Botânico. [...]. Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores,
pequenas surpresas entre os cipós. [...]. Tudo era estranho, suave demais,
grande demais. Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida
[...]. Inquieta, olhou em torno. [...]. A crueza do mundo era tranquila. [...].
Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha
nojo, e era fascinante. [...]. Quando Ana pensou que havia crianças e homens
grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida
e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele,
estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio [...]. O Jardim
era tão bonito que ela teve medo do Inferno. Era quase noite agora e tudo
parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava
fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo. (LISPECTOR,
2009, p.24-25).
Ao se deparar com uma rua comprida e muros altos e amarelos, para
Ana, essa situação representa a seguinte configuração: a rua comprida
representa um espaço onde ela pudesse caminhar refletindo sobre o sentido de
sua vida, o muro alto, significa uma barreira para ela se sentir protegida ou
talvez presa ainda a esse mundo medíocre em que ela vive, pois “lavar, passar,
varrer, descobrir os flocos de poeira escondidos sob a noite dos armários, é
recusar a vida” (BEAUVOIR, 1980, p.201). E por que os muros são amarelos e não
de outra cor? O amarelo, segundo (KAMPUSKY,2005) é a cor representativa dos
deuses, da eternidade, da fé, da iluminação, da riqueza e da opulência, havendo
assim um paradoxo entre viver o tédio do cotidiano de ser simplesmente uma dona
de casa a famosa “rainha do lar” e se arriscar num mundo totalmente novo e
desconhecido até então por Ana. Ela opta por este mundo doméstico, mais por
representar para ela uma segurança e não por aceitá-lo ou por se considerar uma
“rainha do lar”, pois agora Ana sabe que não é rainha de coisa nenhuma que está
mais para “vassala do lar” o que está muito longe de um título de nobreza, sua
opção mesmo que forçada pela pressão social está metaforizada na figura do
filho, quando ela o abraça com força, como quem se agarra ao seu confortável
mundo que é sua casa, seus filhos e seu marido apesar de não aceitar mais
certas verdades que antes eram inquestionáveis.
4.3
A desalienação latente de Ana
Como afirma (BEAVOUIR,
1980), todo indivíduo que procura justificar sua existência, sente essa necessidade
porque precisa se transcender, a mulher como todo ser humano, precisa de uma liberdade
autônoma, precisando descobrir-se e escolher-se num mundo em que o homem lhe
impõe a condição do Outro, pretendendo este torná-la objeto e votá-la à
imanência, sendo assim sua transcendência será sempre transcendida por outra
consciência essencial e soberana [a dos homens]. A mulher sofre esse drama, esse conflito
entre a reivindicação fundamental de todo sujeito que se põe sempre como o
essencial e as exigências de uma situação que a constitui como essencial, sendo
que muitas vezes a própria mulher aceita e reconhece que o universo é em todo
seu conjunto masculino, universo esse que os homens modelaram, dirigiram,
dominaram e ainda hoje o dominam, mas como pode se realizar um sujeito dentro
de uma condição feminina em um universo machista? Quais caminhos e
possibilidades lhe são abertas? Como encontra independência no seio da
dependência? Que circunstâncias restringem a liberdade da mulher e quais ela
pode superar? Ana vive esses conflitos,
conflitos estes que giram em torno do bem e do mal, do amor e do ódio, gerando
uma crise individual em Ana o que será analisado neste trabalho.
Como já foi dito Ana não se
encontra satisfeita com sua condição de mulher, que cuida somente da casa, dos
filhos e do marido, o episódio do cego na parada do bonde, faz com que ela refletisse
sobre a vida que até então levara, desde então há uma desalienação por parte de
Ana, uma desalienação mesmo que seja subjetiva onde em ela se faz perceber como
mulher e que sendo mulher, é como todo ser humano detentor do direito de
escolhas para sua vida.
Ana, certa hora da tarde se
encontra sozinha, essa hora é considerada por ela a mais perigosa do dia, pois
já que se encontra a só consigo mesma e é neste horário que mora o perigo, pois
ela cessa seu trabalho repetitivo e pode pensar no significado de sua vida,
correndo o risco de se encontrar consigo mesma:
Certa hora da tarde era mais perigosa.
Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais
precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que
nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas
para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo
vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias
realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e
suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de
aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa. [...]
Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a
casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família
distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava
um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura
pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa
lhe haviam transmitido. (LISPECTOR, 2009.p.19-21).
Ana mesmo repensando o
significado de sua vida, não se permite a uma mudança, ela sabe que sua vida
poderia ser diferente, mas preferiu usar seus dons artísticos para o serviço
doméstico, ao invés de usá-los profissionalmente. Ela tem convicção de que as
pessoas quando desejam, podem dar o rumo que quiserem a sua vida, na medida em
que “a vida podia ser feita pela mão do homem” (LISPECTOR, 2009, p.20), ou
seja, cada pessoa pode decidir o que quer para sua vida, mas também, pode deixar
que os outros decidam o que fazer com ela, é o que acontece com Ana pois sua
vida é dos outros e não tem lugar para
seus desejos e anseios, ela se esquece de se desalienar se sufocando de maneira
a não aparentar a ninguém e finge que é
feliz com sua vida repetitiva, enquanto que por dentro ela está totalmente
mudada, mesmo aceitando viver sem felicidade nenhuma, pois a felicidade estava
fora do seu alcance, afinal tinha uma família perfeita, tinha “filhos e maridos
verdadeiros” (LISPECTOR, 2009,p.20). Esquecera sua juventude, que agora perecia
uma doença vivia agora uma vida comportada de adulto que ela mesma escolhera,
isso de uma certa forma lhe bastava pois como a própria Ana dizia “sem
felicidade também se vivia” (LISPECTOR, 2009,p.20), ela preferia a certeza de
uma vida monótona mas calma e tranquila a incerteza do questionamento, da não
aceitação e assim correr riscos de perder sua situação confortável de mãe, mulher e perfeita dona de casa, enfim
ela aceita o tédio:
Com efeito, muitas vezes a mulher se
vinga do tédio [...]. Cala suas queixas [...]. Os filhos não lhe trazem
tampouco divertimento ou paz: refeição e noite decorrem em meio a vago mau humor
[...]. Adormece, desiludida, irritada [...]. A sorte das mulheres é tanto mais
dura quanto mais pobres e sobrecarregadas de trabalhos; melhora quando têm
lazeres e distrações ao mesmo tempo. Mas
este esquema- tédio, espera decepção- se encontra em muitos casos. (BEAUVOIR,
1980, p. 238).
Será que Ana escolhera mesmo
essa vida? Ou será que a sociedade em que ela vivia lhe impôs esse tipo de
pensamento, sabendo que a forma de pensar do sujeito também é fruto da
sociedade onde este está inserido, pois se sabe que nas sociedades
falocêntricas a mulher é condicionada desde a infância a aceitar seu destino de
mulher, ou seja, aceitar os afazeres domésticos como se fossem funções naturais
da mulher e associados à maternidade:
Os trabalhos domésticos a que está
votada, porque só eles são conciliáveis com os encargos da maternidade,
encerram-na na repetição e na imanência; reproduzem-se dia após dia sob uma
forma idêntica que se perpetua quase sem modificação através dos séculos; não
produzem nada de novo [...] Sua desgraça consiste em ter sido biologicamente votada
a repetir a Vida, quando a seus próprios olhos a Vida não apresenta em si suas
razões de ser e essas razões são mais importantes do que sua vida [...] Em
verdade, as mulheres nunca opuseram valores femininos aos masculinos; foram os
homens, desejosos de manter as prerrogativas masculinas, que inventaram essa
divisão: entenderam criar um campo de domínio feminino- reinado da vida, da imanência.
(BEAUVOIR, 1980, p.83-84).
Depois
de Ana ter visto o cego na parada do bonde, tudo mudou em sua vida, pois daquele
dia em diante ela nunca mais foi como ela era, ou pelos menos pensava que era.
Ana acorda para a realidade da sua vida, agora sente mal-estar em relação seu
estado de imanência, mostrando interesse por querer se libertar das amarras
enfadonhas do dia a dia, mas ao mesmo tempo lhe falta coragem suficiente para
realizar tal vontade:
Poucos instantes depois já não a
olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara
atrás para sempre. Mas o mal estava feito [...] O mundo se tornara de novo um
mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus
próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se
mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a
falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir.
Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da
frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas
com a mesma calma com que não o eram. (LISPECTOR, 2009, p.22-23).
Agora
lhe veio uma crise de existencialismo, olhava as coisas como nunca havia olhado
tudo agora era diferente, tudo agora corre perigo, o mundo agora é voraz e ela
se torna impaciente, passou a vida toda cuidando para que a vida não
explodisse, esforço em vão, pois o cego teve esse poder de despedaçar tudo isso,
o seu modo de viver, sua imaginação, despertando em Ana novos sentimentos,
emoções e sensações, tudo para ela até aquele dia era calmo e tranquilo até
que:
O que chamava de crise viera afinal. E
sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo
espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes
mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma
revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego
mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. (LISPECTOR, 2009,
p.23).
Ao ter descido na parada errada Ana vagueia meio desorientada pelas ruas até chegar ao Jardim Botânico, não havia ninguém por lá e ela aproveita para refletir sobre sua vida em contato com a natureza em harmonia com a vida selvagem já que a maioria das personagens de Clarice vive em busca do Coração Selvagem, por julgar os animais melhores em relação aos sentimentos do que os homens. Ana passou muito tempo refletindo meio extasiada em um encontro consigo mesma, estava inquieta e começou ali mesmo um processo de desalienação secreta proporcionado agora pelo ambiente natural do Jardim Botânico:
Só então percebeu que há muito passara
do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto
[...]. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da
noite. [...]. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra,
sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo. [...] Inquieta, olhou
em torno. [...]. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa
emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber
(LISPECTOR, 2009, p.23-24).
Ana agora é diferente, pensa
diferente, mas ainda não é capaz de agir de forma diferente, sente agora que
algo se rompeu e não há como ficar indiferente a isso, pois agora é uma nova
mulher e mesmo se sentindo culpada, seu coração se enche de vontade de viver,
de ser livre e de se desalienar já que o episódio do cego a fizera enxergar
coisas antes imperceptíveis para ela, tudo isso é muito novo e difícil para ela
administrar, pois tudo que era tranquilo havia se quebrado sua rotina de dona
de casa conformada com a mesmice repetitiva e maçante. Diante de tudo isso Ana,
de sua transcendência introspectiva, prefere a segurança de um lar com marido e
filhos, aconchego da cama com seu marido, pois isso acaba com o perigo de uma
vida baseada em tudo que ela tinha passado e pensado durante aquele dia que
para ela teria sido um marco na sua maneira de pensar:
Não havia como fugir. Os dias que ela forjara
haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não
havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade,
não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver[...]Um
cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada[...] O que o cego
desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de
novo?[...] Hoje de tarde alguma coisa tranquila se rebentara, e na casa toda
havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num
gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher,
levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.
Acabara-se a vertigem de bondade. E, se
atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um
instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma
vela, soprou a pequena flama do dia. (LISPECTOR, 2009, p.27-29).
Depois
de todos esses acontecimentos, Ana reflete sobre sua vida, até tenta agir de
maneira diferente, mas volta a sua realidade para se sentir protegida pelo lar
e pela família, se entregando a esse mundo, desistindo do outro que ela
conheceu quando viu o cego e isso se afirma no fato de Ana ter ido dormir no
aconchego do seu quarto, tomada pela mão do marido, sem olhar para trás na
tentativa de se afastar definitivamente do perigo de viver, que se metaforiza na volta à tranquilidade cotidiana, após uma
aventura, equivalente a outra maneira de ver o mundo e mesmo esse momento de
descoberta sendo próprio e positivo, Ana se agarra ao universo que sempre vivera,
um universo restrito que poderia ser agora diferente se ela tivesse tido a
coragem de mudar de vida, apesar de tudo isso Ana não é mais a mesma mulher que era antes de despertar ao
ver o cego na parada a mascar chicletes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Averiguou-se neste trabalho
como se deu o início da ruptura das tendências androcêntricas na literatura
brasileira de autoria feminina, tendo como objeto de análise o conto Amor de Clarice Lispector, onde se
investigou por meio da personagem principal Ana como se deu esse começo de
rompimento dos modelos patriarcais que até então predominavam na literatura,
pois até aí a literatura era feita por homens e para os homens.
Durante o desenvolvimento
deste trabalho, pode-se perceber que a crítica feminina contribuiu muito para a
literatura de autoria feminina e que as questões de gênero no campo da
literatura ganharam corpo nos últimos anos mais precisamente nos 60, muito
foram as teóricas que buscaram quebrar tabus em relação à escrita femininas
tais como Kate Millet, Eliane Showalter, Simone de Beauvoir entre outras.
Surgiram muitas correntes feministas, mas somente duas se faz perceber até
hoje, a crítica feminina francesa que trata das questões de sexo e escrita e a
crítica feminina anglo-americana de visão mais ampla sobre o assunto.
Quando se fala em quebrar paradigmas em relação à
literatura de autoria feminina, Clarice Lispector foi a primeira no Brasil a
ter esse tipo de visão, na obra Laços de
Família ela vai contra todo um modo de escrever até aquele momento, essa
coletânea é composta por contos que questionam o modelo de família vigente contrariando os modelos de literatura
centradas na lei do pai, ou seja, escrita de
forma a opor-se aos modelos patriarcais e androcêntricos.
Ao analisar o conto Amor, percebeu-se que a personagem Ana vive alienada, leva uma vida
normal de acordo com o pensamento androcêntico, sua vida é automática. Preocupada
apenas com seus afazeres domésticos, ela está totalmente alheia e vive sua
rotina enfadonha como se tudo isso fosse muito normal, até que um dia ao sair
para fazer compras, ela vê um cego na parada de bonde mascar chicletes como se
estivesse sorrindo ao fazer aquele movimento repetitivo com as mandíbulas, o
homem na escuridão da sua cegueira parecia ser feliz sem sofrimento algum, isso
passou a incomodar, porque ela pensava que aquele homem era feliz mesmo com as
dificuldades imposta pela a vida ele parecia não ter nenhuma restrição para ser
feliz, enquanto que ela vivia em um mundo restrito e sem esperança, havia
somente angústia e melancolia sua vida era parada e sem perspectiva, por causa
dessa situação acontece o estalo que faz com que Ana comece um processo de
desalineação, começa ela então a se descobrir e perceber que a vida pode ser
muito mais que uma casa, filhos e marido para cuidar. Essa desestabilização do
mundo de Ana é representada no solavanco do bonde nos trilhos, nos ovos que se
partem deixando escorrer as gemas, no ato
viol4nto de Ana ao esmagar uma
formiga que caminhava tranquila
pela cozinha, num empurrão que uma mulher dar no filho no meio da rua,
na decomposição das folhas e galhos de árvores no Jardim Botânico bem como na
quebra do silêncio provocada pelos
ruídos e movimentos dos animais presente neste local. No balançar das árvores e
no estouro do fogão.
Constatou-se então que o conto analisado pertence a
segunda fase da crítica feminista , chamada de feminist (feminista),
neste contexto há sim um rompimento com os valores andrcêntricos, mas ainda de
certa forma se apresenta ligada ao patriarcalismo, uma vez que não está
totalmente desvinculada dos valores patriarcais, consoante que Ana por mais que
tenha percebido o automatismo em que vivia não consegue romper essa postura,
uma vez que ela tem medo de sofrer as consequência que um novo modo de vida
pode lhe trazer, preferindo ela ficar na mesmice o que não significa dizer que
ela não sofrera uma delalienação, a não aceitação de certos valores ligados ao
casamento, a profissão de dona de casa pode não ter se explicitado, mas com
certeza introspectivamente há uma desalienação latente por parte de Ana.
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